
Tratemos de expor agora o trabalho que, em nossa opinião, deve desenvolver, sob as circunstâncias atuais, aquele que queira “iluminar” o mundo (que é a missão do intelectual católico). Porque a sua é uma função “iluminatória”. Parece próprio da inteligência iluminar onde imperam as trevas. Se esta função sempre foi necessária, hoje o é mais do que nunca, porque a escuridão anda mais espessa. No fundo, não é nada além de uma participação na tarefa iluminadora d’Aquele que disse: “Eu sou a luz”, “Eu vim para trazer a luz do mundo”. A luz sobrenatural, mas também, de certo modo, a natural. Onde há luz, em última instância há Cristo, Luz do mundo. Quais são as áreas que o intelectual católico deve iluminar com a sua presença e, acima de tudo, com a sua sabedoria?
Filosofia. Primeiro de tudo, o campo da filosofia. No terreno da filosofia, o processo de decadência a que nos referimos acima, tornou-se mais evidente do que em qualquer outro terreno. O intelectual católico deve conhecer o melhor possível as várias correntes filosóficas que, a partir de Descartes, culminaram no marxismo e na Nova Ordem Mundial Globalista. Mas deverá conhecer, muito melhor ainda, a filosofia perene, que encontra uma magnífica realização no pensamento de Santo Tomás de Aquino. Este será o seu ponto de referência, que lhe permitirá pronunciar um juízo sobre toda filosofia que se afaste do reto caminho em direção ao ser.
Nada poderia estar mais longe da ecletismo que esta posição. Sabemos bem que, na universidade, o jovem se instrui no conhecimento das diversas correntes filosóficas, não lhes atribuindo outro valor, além de sua mera manifestação cronológica. O filósofo cristão não pode ser um mero espectador do devir filosófico, um coqueteador das filosofias em voga. Deve, antes, ser um enamorado do ser, do ser natural e o Ser sobrenatural. Seu ofício não consistirá em “conhecer” diversas filosofias, mas “julgá-las” a partir do ponto de vista inabalável da verdade, que, além de conhecida, deverá também ser saboreada. Seu ofício não consistirá, tampouco, em uma repetição mecânica da ortodoxia escolástica, mas, aproveitando a validade perene de seus princípios, saberá iluminar a realidade do homem atual e responder aos seus problemas prementes. É mais importante saber responder às objeções de Marcuse ou Gramsci do que às de Durando ou Pedro Abelardo.
Direito. Outro ramo da cultura é o mundo do Direito. As épocas de plenitude cultural souberam distinguir o direito divino, o direito natural e direito positivo. Depois de recusar o direito divino, os homens tentaram estabelecer a justiça com base no direito natural e positivo. Numa etapa posterior, só restou o direito positivo, pois já se já afirmava, com franqueza, a inexitência de todo direito ancorado na natureza humana.
Hoje, assistimos a negação do próprio direito positivo. Só resta o direito do mais forte. O papel do jurista católico é, portanto, enorme, devendo refazer o caminho anterior à destruição. Será necessário recriar todo o direito positivo, ancorando-o no direito natural, e este, sempre compreendido como participação do direito divino no homem. Só então a sociedade voltará a encontrar a jurisprudência que merece.
Ciência. O intelectual católico também deverá iluminar o campo da ciência. Campo especialmente privilegiado pelos inimigos de Cristo e da Igreja. Não é em vão que numerosos expoentes do processo destrutivo proclamam um “materialismo científico”. Será necessário reposicionar este campo do conhecimento em seu devido lugar, em depedência Daquele que é o início e o fim de toda lei física, de qualquer propriedade química. Einstein chegou a afirmar que “a ciência sem religião é manca e religião sem a ciência é cega… Eu não estou interessado neste ou outro fenômeno, nem no espectro de um elemento químico. Eu quero conhecer o pensamento de Deus; o resto é detalhe.”
Se o universo canta a glória de seu Criador, se este mundo, com suas leis admiráveis, é, nas palavras de Santo Agostinho, “o grande poema do inefável modulador”, caberá ao cientista católico fazer com que a ciência cante sempre um cântico novo. As descobertas científicas já não serão pretensos argumentos contra a fé, mas um trampolim para Deus, em continuidade com a visão que nos dá a Sagrada Escritura, despertando em nós a admiração pela ordem, a beleza e a sabedoria que resplandecem na criação.
Política. Outra área que deve ser iluminada pelo intelectual católico é a política. Este âmbito da atividade humana – e quão humana! — está obviamente ferido. A expressão, em si, já se tornou sinônimo de interesse proprio, roubo, imoralidade. Em sua natureza, porém, a política possui tal nobreza, que corresponde a uma das mais elevadas atividades humanas, oferecendo a oportunidade de praticar o que Pío XI chamava de “caridade política”; atreveríamos a dizer que, se bem compreendida, é uma das formas mais altas de caridade que o cristão pode exercitar, na ordem temporal. Caridade política, pois o governante católico, ao propiciar aos cidadãos o bem-estar temporal, coloca, de alguma forma, as bases naturais de seu destino transcendente e, assim, o cidadão, sem se deixar envolver pelos bens da terra, não perde de vista o seu fim escatológico.
É claro que o homem pode ser salvo mesmo vivendo sob um regime de terror, sob o regime do Anticristo. Mas, então, a salvação será extremamente difícil, altamente heróica. Ao contrário, quando um governo se dedica à busca do bem comum, não só cuida diretamente da felicidade terrena de seus súditos, mas de alguma forma facilita, mesmo que indiretamente, a sua salvação eterna. Iluminar, pois, este campo tão tenebroso, explicar o que se tem chamado de “concepção católica da política”, é outro dos objetos de especulação do intelectual católico.
Educação. Um âmbito privilegiado para a atuação do católico militante é certamente o da educação. O fato de que os inimigos de Cristo, da Igreja e da Pátria dediquem tantos esforços nesta tarefa, mostra-nos, pela astúcia que tão bem caracteriza os perversos, a importância do mesmo. Urge uma investigação teórica sobre o que é a educação, os seus fins, os seus meios, o que deve ser uma escola, uma Universidade. Graças a Deus, nas últimas décadas foram escritos notáveis obras sobre o assunto, obras que honram o nível alcançado pela cultura católica Argentina. No entanto, é um trabalho nunca concluído. O Santo Padre [Bento XVI], e, na América Hispânica, o documento de Puebla, exortam uma e outra vez para o que denominam “a evangelização da cultura”. Mais importante, talvez, do que a tomada do poder — que os que se dedicam à política devem ter como propósito substancial — é a tomada da cultura. Entendemos esta palavra em um sentido amplo, incluindo os meios de comunicação que, gostemos ou não, estão condicionando o modo de pensar dos argentinos. Acreditamos que, neste campo, como talvez nenhum outro lugar, são necessários espírito e imaginação criadores. É preciso construir boas escolas, boas universidades, boas revistas de cultura, grupos de estudo com sólida formação intelectual.
Artes. É necessário cuidar, também, das artes. Sob este nome, incluimos tudo o que normalmente entendemos por “belas artes” (música, literatura, pintura, arquitetura, escultura), ou seja, aqueles manifestações humanas que afirmam sua relação com o que, às vezes, se denomina “estética” . Eis aqui outro campo cobiçado pelo inimigo. As artes, que em si não devem ser mais do que o esplendor da verdade, estão tragicamente feridas e degeneradas. Assistimos ao espetáculo de uma pintura que encerra o homem em sua subjetividade, onirizando-o e destruindo-o. Estamos diante de uma literatura que não só atenta contra a beleza da língua, como também contra a verdade ética e, a fortiori, metafísica. Chegam também aos nossos ouvidos, cotidianamente, uma música sem alma. Não devemos esquecer que a música faz o homem. Os vários tipos de música fazem diferentes tipos de homens: o homem sensual, o homem materialista, homem superficial, o homem erótico, o homem virtuoso. Hoje, mais do que nunca, quando a música parece adorar a feiúra, o barulho ensurdecedor que torna praticamente impossível qualquer tentativa de vida interior, impõe-se o surgimento de músicos católicos não só capazes de transmitir o sentido das harmonias sensíveis, como também o sentido das verdades profundas, especialmente aquelas que estão relacionadas com o mistério, e isto não só no âmbito da música profana, mas também no ferido mundo da música sacra. Temos necessidade de músicos, pintores, escultores marcados pelo selo católico, que é feito de fidelidade ao ser e à Graça. Por eles, a arte conseguirá irradiar, através do sensível, o esplendor da verdade.
História. Finalmente, sem a pretensão de esgotar todas as linhas em que o intelectual católico deve aplicar seus talentos, não podemos deixar de nos referir à pesquisa histórica. Nele nos deteremos um pouco mais do que em outros campos, porque o consideramos particularmente importante.
Somente a memória fiel do passado torna possível uma análise aceitável do presente e uma séria perspectiva do futuro. Assim, se em algo deve exercitar-se a tarefa iluminante do intelectual católico, é no campo da interpretação da história.
Quantas vezes encontramos pessoas que, ao considerar os problemas do nosso tempo, o fazem como se se tratasse de problemas de recente data, de problemas que acabam de aparecer, e cujas soluções lhes parecem estar, consequentemente, ao alcance das mãos. E, dessa maneira, se equivocam nos remédios. Se queremos que nosso tempo seja inteligível, é absolutamente necessário que o localizemos sob a tela de fundo da história universal, sob esse leque amplíssimo que vai do Gênesis ao Apocalipse. Os problemas de nosso tempo não são recém nascidos, mas têm atrás de si um longo período de gestação, às vezes de séculos. Neste sentido, muito útil será ao militante católico a leitura das análises históricas de Berdiaeff, Gonzaga de Reynold, Belloc, Solzhenitsyn, e, entre nós, de Diaz Araujo e Alberto Caturelli. Ali, vamos encontrar a explicação desse grande processo de apostasia, iniciado desde o final da Idade Média, num processo que começou com a negação da Igreja pelo protestantismo, prosseguiu com a negação de Cristo pelo deísmo racionalista, culminando na rejeição do próprio Deus pelo marxismo ateu. Os problemas de hoe não surgiram, pois, aqui e agora, mas são os estertores de um longo processo histórico.
Decorre, daí, a necessidade do intelectual católico ter bem estruturada, em sua mente, o que se tem chamado de “filosofia da história”, embora melhor seria denominá-la “teologia da história”. Para esta visão global nada melhor que a meditação da imortal obra de S. Agostinho De Civitate Dei, onde o Santo Doutor compreende o devir histórico à luz do conflito teológico entre duas cidades, a Cidade de Deus e a Cidade de Satanás, a radicada no amor de Deus até o desprezo de si mesmo, e a fundada no amor de si até o desprezo de Deus.
Nesta obra, o Doutor de Hipona oferece-nos as chaves da história universal. Trata-se, contudo, de uma obra inacabada, considerando-se as inevitáveis limitações do grande mestre que, naturalmente, só podia analisar o curso da história até o século em que viveu. Cabe a nós, agora, continuar a sua tarefa, sempre de acordo com as claves que ele nos deu, mas aplicando-as aos novos acontecimentos que se vão sucedendo.
Conclusão. Percorremos diversas áreas, pelas quais deve irradiar-se o trabalho esclarecedor dos que aspiram ser líderes católicos, no campo da inteligência.
A amplitude da tarefa pode suscitar grande temor. Já alertamos que o mundo da cultura vai para o outro lado, que a verdade não é aceita pela multidão. E o sistema da maioria simples — metade mais um —, saindo do terreno onde se cristalizou, que é o da política eleitoral, ameaça invadir também o campo dos defensores da verdade. Hoje, está se espalhando, perigosamente, uma espécie de ceticismo doutrinal. Fala-se da “minha verdade”, da “sua verdade”, todo mundo tem “sua verdade”. Condena-se ao ostracismo o que pretende afirmar não “sua” verdade, mas “a” verdade. Não temamos, porém, a solidão: a verdade nunca está sozinha. A verdade está com o ser, e, portanto, com a verdadeira universalidade. Cristo tinha razão, mesmo quando a “metade mais um” preferiu Barrabás. Nada é mais pernicioso a um intelectual católico do que o desejo de estar bem com o mundo, diluindo consideravelmente a verdade, fragmentando-a, mesmo que o faça com a intenção de que seja aceita.
“Não sejais semelhantes ao mundo”, ensinava João Paulo II, “não procureis ser semelhantes ao mundo. O que deveis fazer é tornar o mundo semelhante à Palavra Eterna” (Discurso à Pia Sociedade de São Paulo, em 31/03/1980). Em última análise, em longo prazo, nada atrai tanto quanto a integralidade da verdade, a verdade sem rodeios.
Além do mais, o intelectual católico deverá estar disposto a suportar grandes adversidades. Santo Agostinho, esse cunhador de frases imortais, disse-o incisivamente: “A verdade engendra o ódio.” É verdade que Cristo, por sua façanha redentora, foi amado como ninguém o foi na história. Mas, ao mesmo tempo, ao concentrar em si, encarnando-a, a plenitude da verdade — “Eu sou a verdade” —, também atraiu para junto de si o ódio do mundo, do espírito do mundo, que não só o levou à cruz, mas ainda o continua perseguindo até o fim dos séculos. Não só a ele, como também a todos que querem afirmar, em alta voz, a verdade. O mundo persegue-O neles. O mundo persegue aos que defendem a verdade, porque são diferentes, e sua própria presença já é uma espécie de censura implícita ao mundo.
Citemos, a propósito, alguns ensinamentos esclarecedores de João Paulo II: “Aprendei a pensar, falar e agir de acordo com os princípios da clareza evangélica: sim, sim; não, não. Aprendei a chamar de branco o que é branco e preto o que é preto; chamar de mal o que é mal, e bem o que é bem. Aprendei a chamar de pecado o que é pecado, e não o chameis de libertação ou progresso, mesmo quando toda a moda e propaganda forem contrárias a vós” (Discurso aos alunos universitários de Roma, em 26/03/1981).
Talvez a grande missão do intelectual católico, em nosso tempo, seja a de manter íntegro, em meio a um ambiente caótico e subversivo, o legado da tradição, a ação de conduzir a tocha da cultura à geração seguinte. Não foi de outra maneira que agiram os católicos mais clarividentes quando, nos séculos obscuros da Idade Média, ocorreu a invasão dos bárbaros. Hoje, novas ondas de barbárie já se lançam sobre os restos da civilização cristã. Como outrora nos monastérios, mantenhamos viva a chama da cultura, mesmo que seja em pequenos cenáculos ou grupos de formação, para que ela possa ser conhecida por nossos filhos, os quais, por sua vez, a retransmitirão.
Em uma palavra, trata-se de refazer a Cristandade, não retornando, como é óbvio, aos aspectos anedóticos da Idade Média, mas aos princípios que a gestaram. Trata-se de fazer Cristo reinar na universalidade da ordem temporal. Todos os filões da cultura devem expressar ou refletir o Cristo, a Realeza de Cristo. Que a filosofia seja o reflexo de Cristo, enquanto sabedoria encarnada; que as ciências reflitam Cristo, enquanto perfeita exatidão; que a história reflita Cristo, Senhor dos espaços e dos tempos; que a política reflita Cristo, Soberano das sociedades e Rei das nações; que a educação reflita Cristo, o pedagogo supremo; que as artes reflitam Cristo, a beleza encarnada. Filosofia, ciência, história, política, educação, artes — são tantas as maneiras de irradiar-se o Cristo verdade, Cristo exatidão, Cristo Senhor da história, Cristo soberano, Cristo Mestre, Cristo, enfim, como o mais belo dos filhos dos homens .
“Aperite portas Redemptori!” (“Abri as portas ao Redentor!”), exclamava João Paulo II. Contribuamos para que não fique uma única porta fechada, pelo menos neste mundo da cultura em que nos cabe agir. Para que um dia se torne real aquela frase, segundo a qual Cristo se tornaria Tudo em todos.
(Trecho da palestra proferida pelo padre jesuíta argentino Alfredo Sáenz, ao receber o Doutorado Honoris Causa pela Universidade Católica de La Plata (UCALP), em 22 de Outubro de 2012, em reconhecimento por sua contribuição à cultura católica. Padre Saenz escreveu muito sobre problemas de história da Igreja, filosofia da história e atualmente sobre a Nova Ordem Mundial).
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