Orgulho-me de dizer que pertenço àquela que é, de longe, a maior instituição multicultural da história: sou um católico romano. E me envergonho de dizer que pertenço a uma instituição estranhamente determinada a destruir o resto daquilo que, atualmente, ainda pode ser chamado de cultura: sou um professor universitário. A combinação dessas duas coisas coloca diante de mim uma infinita possibilidade de questões, que ninguém está preocupado em responder.
Podemos começar com a palavra multicultural. A Igreja tem sido assim — multicultural — desde o seu início. Lemos nos Atos dos Apóstolos que os seguidores de Jesus que vinham da diáspora — os judeus helênicos, que falavam grego — nem sempre eram benvindos por aqueles que viviam na Palestina (e que, presumivelmente, falavam aramaico).
Esse conflito tinha de ser resolvido, mas adquiriu um aspecto muito mais dramático quando São Paulo foi a Jerusalém advogar, não pelos judeus helênicos, mas pelos gentios gregos; gregos que tinham aderido a Jesus, mas não eram judeus e, portanto, não seguiam as prescrições civis e litúrgicas da lei mosaica.
A longa história da atividade missionária da Igreja tem seguido a liderança de São Paulo, que sabia que um homem sem Cristo está perdido; mas que era, também, muito cuidadoso em não transformar a fé num conjunto de hábitos culturais.
Alguma revelação de Deus, ainda que insuficiente para a salvação, é concedida para todos os povos; por isso, Paulo podia ser um grego entre os gregos, como Matteo Ricci pôde se tornar um mandarim para pregar aos mandarins na China.
Não estou dizendo, aqui, que todos deveriam ser multiculturais. A principal exigência cultural de Deus aos hebreus, no Velho Testamento, era que eles não deviam ser como seus vizinhos. Não deviam atirar seus filhos ao fogo de Moloch. Não deviam frequentar as tendas de Asherah e participar de prostituição ritualística com mulheres e rapazes. Não deviam chorar na morte anual de Tamuz, deus da fertilidade.
Os judeus deviam ser judeus, e não pagãos que cantassem salmos só de vez em quando. A Festa das Luzes, Hanukkah, celebrava a purificação e re-dedicação do Templo, contra os gregos dominadores que colocaram uma estátua de Zeus — abominação da desolação — no Santo dos Santos; e contra os judeus oportunistas que tinham arranjado uma forma de se dar bem com aqueles cosmopolitas sofisticados.
Judas Macabeu estava bem dentro de uma longa tradição de profetas inflexíveis. Ele e Ezequiel teriam se compreendido muito bem. Somente por ser leal para com o Senhor é que o povo judeu — o povo eleito — poderia desempenhar seu papel de portador da palavra de Deus às nações.
Individualmente, é possível a uma pessoa ser multicultural, embora não seja fácil; e é menos comum, hoje em dia, do que foi na Idade Média, quando um jovem chamado Tomás, cuja língua natal era o italiano de Nápoles, podia viajar para Colônia e ter lições em latim com seu mestre Alberto; e, depois, ir a Paris para ensinar numa cidade em que as pessoas só falavam francês, entre estudantes e professores que vinham de toda a Europa, com a fé cristã já incorporada a cada específica cultura local, de Trondheim a Messina.
Se você quer ser multicultural, você terá de se sentir totalmente em casa em mais de uma cultura, e isto normalmente implica que seja, pelo menos, fluente em mais de uma língua. Além disso, você será possuidor de pelo menos dois grandes tesouros de histórias e canções imemoriais. Cantará, por exemplo, canções sobre o norte-americano Davy Crockett e o venezuelano Simon Bolivar; poderá incluir, entre seus amigos, os amantes perseguidos do romance de Alessandro Manzoni e os cavaleiros da Távola Redonda dos romances medievais franceses; poderá ouvir Bach e as melodias pentatônicas tradicionais dos chineses. Não são coisas em que você mergulha os pés de leve, como um turista banhando-se no Mediterrâneo. Essas coisas alheias teriam de se transformar em suas próprias coisas.
Quando você coloca isso nesses termos, verá que de nem um estudante entre cem, talvez nem mesmo um entre mil, pode dizer-se que possua algumas das riquezas de mais de uma cultura. E isso não por falhas pessoais, mas porque a cultura, em si mesma, aquilo que nós supomos possa ser dito a respeito dela, está desaparecendo da face da terra, sendo substituída por algo novo na história da humanidade: aquilo que Gabriel Marcel chamou de “sociedade de massa”, uma sociedade manufaturada por uma educação de massa, inflamada por políticos de massa, e distraída até a morte por entretenimentos de massa.
Assim, o típico estudante americano chega à universidade e nem sequer reconhece o nome Alfred Tennyson (como isso é possível?); e o típico estudante hispano-americano, que chega na universidade, não reconhece o nome de Tennyson, nem tampouco o de Lope de Veja.
Você não pode ser multicultural quando não pertence totalmente a uma certa cultura. Nessa situação, quando os bárbaros de Wall Street, Hollywood, Washington e Bruxelas disparam sem parar o seu aríete contra os portões de cada reduto remanescente da cultura local e nacional, o que faz a academia?
Ela, a academia, faz o que tem feito desde que me entendo por gente, durante toda a minha vida: rende-se. As pessoas que realmente não se interessam por Chretien de Troyes, também não se interessarão por Lady Murosaki. As pessoas que não se escandalizam quando um falante com educação universitária em inglês nada sabe sobre Milton — pois os próprios professores nada sabem sobre Milton — não se escandalizarão quando um falante com educação universitária em francês nada souber a respeito de Racine.
A única instituição remanescente que ainda poderia dar conta da beleza e da generosidade da cultura é a Igreja; nela, as culturas do mundo ainda têm uma boa chance. Isto pode ajudar a compreender porque a academia é tão hostil com a Igreja: “profissionais” não gostam de ser vencidos por “amadores”.
(Publicado em The Catholic Thing no dia 16 de março de 2017)
https://www.thecatholicthing.org/2017/03/16/what-multi-what-culture%e2%80%a8%e2%80%a8/
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