“Devemos a Freud o princípio do determinismo psicológico, sem o qual seria fútil tentar compreender as atitudes humanas. A ele agradecemos ainda a profunda lição de humildade que foi o reconhecimento do inconsciente dinâmico, golpe de morte na teoria do livre arbítrio”. Tais palavras são de uma ilustre psiquiatra patrícia, psicanalista não ortodoxa, em sua obra póstuma Nosologia Psiquiátrica (1). Cremos que foi um pouco longe a saudosa colega quando atribuiu ao criador da Psicanálise a paternidade do determinismo. É este tão velho quanto a humanidade. Dos filósofos do pórtico aos positivistas do século transato, passando pelo fatalismo do Islão, pelo panteísmo psicofísico de Spinoza, por Leibniz com sua tese da ação necessariamente dirigida para o melhor, pelos empiristas ingleses, pelo pessimismo de Schopenhauer, são incontestáveis as teorias contra aquela que foi chamada “la serrure embrouillée de la methaphysique”. Incontáveis são as inteligências fulgurantes que, pelo menos em vinte e quatro séculos, procuraram justificativas para uma posição que em última análise pouco difere daquela dos tolos de que nos fala o trágico inglês que admiravelmente se desculpam, dizendo-se necessariamente depravados: “Imbecis por vontade do céu, espertos e ladrões por influência das esferas, beberrões e mentirosos ou adúlteros em obediência ao planetas” (2).
Mas, se o problema não é de hoje, magno interesse tem na atualidade. Parodiando LAET, diríamos que “se é moléstia antiga, irrefragavelmente assume caráter agudo nos tristes tempos que atravessamos”. Para a reativação dessa enfermidade que deveria estar curada com os progressos da ciência hodierna que vieram abalar os próprios alicerces do fatalismo físico tão de agrado dos nossos velhos discípulos de Comte, vêm colaborando de forma não desprezível certos cultores da chamada psicoterapia profunda. As sondas de Freud foram as primeiras que penetraram nas profundidades do subsolo da alma. Desde a publicação de suas obras, foram obrigados à intimidade com a psicologia profunda todos aqueles que têm a seu cargo a educação, o julgamento ou a cura dos homens. Não nos cabe aqui indagarmos os motivos da inusitada penetração do fruto das elucubrações do sábio de Viena em todos os meios. Diz-nos ALCEU AMOROSO LIMA que, embora menos aparente do que a demográfica, não é menos típica dos tempos modernos, a explosão psíquica. (3) Nesta época em que, no dizer de MARITAIN, acha-se o espírito humano fragmentado, dividido entre o positivismo e o irracionalismo (4), o pobre vivente submetido às forças conjuntas do mundo interior e do meio circundante, viu na Psicanálise uma possibilidade de libertação. Desmandou-se, porém, Freud e aquilo que era apenas um tratamento para as neuroses, transformou-se em uma teoria pretensamente científica sobre a natureza do homem e, indo mais além, como salienta FROMM, em um movimento, com uma organização internacional de linhas rigorosamente hierárquicas, regras estritas para a inscrição e uma direção por um comitê secreto, constituído de Freud e mais seis outros (5). O fanatismo de alguns dos representantes desse Movimento, a existência de uma “linha partidária” jamais vista em qualquer época dentro da ciência bem cedo provocaria dissidências. Adler, Jung e depois tantos outros tornavam-se cismáticos, deixando o Mestre inconformado com as deserções, pois, transcendendo à simples cura psiquiátrica, desejava Freud, como argumenta o já referido FROMM, “ser um dos grandes líderes ético-culturais do século XX, conquistar o Mundo com os seus dogmas” (6). Fala-nos em libertar o ser humano com o seu tratamento psicanalítico, espera combater os males da civilização com as suas associações livres, cria uma nova espécie de “salvation army”, como ironicamente admite em um dos seus trabalhos (7). Megalomania de um gênio que, lamentavelmente, possuía tão estreita “weltanschauung”, pobre e materialista cosmovisão que reduzia aos instintos o único material da vida mental. Megalomania de um gênio que, embora expoente do materialismo, libertou a humanidade, na expressão de ALLERS, da servidão do biologismo (8), permitiu o restabelecimento do domínio do espírito dentro da ciência mental em uma época em que esta caminhava pela perigosa estrada do determinismo fisiológico. Megalomania de um gênio que, embora abrindo novos horizontes aos pesquisadores da alma humana, caiu no erro de tantos predecessores, estabelecendo uma nova forma de determinismo — o procedimento humano dominado por forças inconscientes». Dando a impressão de que “a vida do homem se desenvolve nele sem ele — como bem acentua NUTTIN (9) — nefasta sem dúvida vem sendo a influência dos psicoterapeutas freudianos sobre os seus analisados, mudando radicalmente a atitude dos mesmos com relação à própria conduta. E, infelizmente, tal herança de Freud vem acompanhando a maioria dos praticantes da psicoterapia profunda mesmo aqueles que divergiram do mestre vienense. Das miríades de seitas em que se multiplicou, subdividiu-se, esboroou-se o pensamento psicanalítico, emanciparam-se algumas do dogma sexual, exageraram-no outras, inventaram todas novos esquemas, novos mitos, novas técnicas, mas muito poucas mudaram a sua atitude em face da liberdade. Praticamente, deterministas são todos os cultores da psicoterapia profunda. Assim o são os seguidores de Melanie Klein, os adlerianos, os discípulos de Jung. Na babel culturalista não são poucos os que associam ao determinismo psicológico, o determinismo social. Louve-se o esforço de Frankl e da legião dos que o seguiram na “análise existencial”, algo do monumental no dizer de GUSTAV VOGEL, devolvendo inclusive à psicologia profunda aquilo que a escolástica denomina de “anima rationalis”, abandonando o termo estafado de “psique” que havia 50 anos parecia inseparável da psicanálise (10). Mas em que pese o desejo profundo de reencontro do sentido do ser, não cogitado pelos demais analistas, frustrados veem os seus esforços os nossos existencialistas ao buscarem o êstase ontológico, na palavra de MARITAIN, “dans le brisement de la raison et l’experience du Desespoir et du Néant, de l’Angoisse ou de I’Absurdité” (11). Sem a realidade ontológica, sem a compreensão e convicção da existência do ser, como poderemos ter ordem e unidade na vida do homem?
Se, como vimos, a psicologia profunda parcela-se, fragmenta-se, multiplica-se, progressiva e indefinidamente em escolas que buscam, em sessões psicoterápicas, o aperfeiçoamento do homem e se, desse progressivo e indefinido afastamento dos dogmas freudianos dos seus primórdios, persiste quase exclusivamente o determinismo do inconsciente, cabe-nos perguntar como o Pe. RIQUET ao abrir um dos seus famosos sermões da Notre Dame: Cristãos, somos livres? Existirão realmente homens verdadeiramente livres? Existirá erro de fato na posição dos nossos psicanalistas de hoje como na que tiveram no passado inúmeros filósofos, moralistas, historiadores, criminologistas, biólogos e sociólogos ao negarem a liberdade do homem e condicionarem a sua conduta à hereditariedade. ao meio geográfico, ao ambiente social, à educação, a uma série de circunstâncias oriundas do mundo circundante? Haverá mesmo uma força ativa da vontade pela qual, postas todas as circunstâncias, requisitas para agir, possa a mesma agir ou não? Poderemos afirmar sem qualquer dúvida a nossa capacidade de dizermos “Sim” ou “Não” e decidirmos o nosso comportamento moral independentemente do nosso inconsciente dinâmico? Será que não passamos de simples cata-ventos como queria Spinoza?
Não temos receio da afirmação de que a existência do livre arbítrio é um fato evidente. Difícil é arranjar provas para negá-la. Só os hábeis sofismas de alguns ou o irracionalismo de muitos, encontraram obstáculos na abertura daquela fechadura que, como escreve o nosso mestre Pe. CERRUTI, tão facilmente seria aberta com a chave de ouro da tradição escolástico-tomista. (12). Escrevem os nossos psicanalistas sobre o determinismo nos seus tratados, fazem largo uso do mesmo nos seus colóquios ao divã mas, na prática individual, humanos que são, como dizia JULES SIMON, “falam, sentem e vivem como se acreditassem na liberdade. Não duvidam, mas se esforçam por duvidar” (13). De que somos capazes de atos livres, dissemos, atesta-nos a consciência com a mesma clareza que nos dá conta da nossa existência. E esse testemunho não poderá ser ilusório pois para que houvesse ilusão de liberdade, necessária fora a presença de um ato livre anterior. O consenso universal da existência do dever e da responsabilidade bastaria, por outro lado, para demonstrar a realidade do livre arbítrio. Que restaria da moral, do direito, da pedagogia, da nossa tão cara psiquiatria se não existisse a liberdade? Que faríamos nós, pobres psiquiatras obrigados à avaliação da reponsabilidade em perícias forenses, se não acreditássemos no livre arbítrio? Sem este qualquer lei seria absurda, quer no ajustamento do “eu” ao universo e a seu princípio, lei natural e lei divina, quer nas relações do “eu” com os outros “eu” da mesma natureza, leis civis e sociais.
Incidem os discípulos de Freud no mesmo erro de muitos deterministas anteriores, erro em que caiu até a luminosa inteligência de Leibniz. “A vontade segue necessariamente o motivo mais forte, como a balança se inclina necessariamente para o lado onde o peso é maior”. O motivo seria o determinante do agir. Para eles, acentua CERRUTI, “a deliberação consiste exclusivamente em procurar qual é o melhor motivo, ficando indecisa enquanto não o acha”, (14) na situação atribuída classicamente ao asno de Buridan. Não é o que nos demonstra a experiência que nos evidencia a indecisão ocorrendo na presença de motivos desiguais, optando a vontade pelo motivo menor em muitos desses casos, podendo escolher um ou outro diante de dois iguais. A história universal está à disposição de todos para afirmar os triunfos da vontade humana: Os grandes navegadores, os cientistas, os artistas, os fundadores de império e religiões. Que prova maior de liberdade do que o episódio dos mártires cristãos, repetido em todas as épocas, em todas as latitudes: “Possunt quia posse videntur”, diria o imortal VIRGÍLIO.
Mas se a vontade é fruto de uma atividade autônoma, primária, da vida psíquica, ensina-nos GEMELLI — por outro lado manifesta-se como expressão de toda a personalidade humana (15). Dizia BERGSON que “a liberdade humana existe, mas é cara como o gênio e a santidade” (16). E, realmente, jamais poderíamos admitir que o homem seja totalmente independente. Com humildade, não de deterministas, mas de cristãos, somos obrigados a reconhecer que, como salienta o Pe RIQUET, “nossa liberdade não pode ser nem a de um anjo, nem a de Deus.” (17) Devemos ter presentes as dimensões do nosso livre arbítrio. Espírito criado em uma condição carnal e gregária, o mundo circundante, físico e significativo, atua a todo instante sobre a personalidade do homem da mesma forma que a explosão atômica das forças incônscias, dificultando em muitas circunstâncias o ato livre. Nosso agir, não podemos negar, acha-se condicionado por miríades de forças interiores, como pelo estado do universo ambiente e pelas pressões sociológicas que se exercem sobre nós, complexos “tissus de corps e d’âme”. Em todas as escolas que praticam a psicoterapia das profundidades encontramos algo de verdadeiro que nós, não psicanalistas, criticamos apenas pelo fanatismo da exclusividade ou da generalização. Mas não podemos esquecer que no interior do homem há um “eu” pensante e voluntário capaz de modificar aquelas condições extraconscientes que o impulsionam ou o impedem de agir.
Nossa consciência, imortal e celeste voz, como diria o controvertido JEAN JACQUES, “guide assuré d’un être ignorant et borné, mais intelligent et libre”, atesta-nos diariamente que não podemos substituir os conceitos de “BEM” e de “MAL” (18) pelos de “Normal e “Patológico” como estão pretendendo alguns cultores da psicoterapia profunda. Escreve LOPEZ IBOR que, junto à tecnologia e à socialização, a psicologia completa a trindade que domina a medicina moderna (19). Iríamos mais longe e diríamos que essa trindade está presente em todos os setores de atividade do homem da era dos foguetes interplanetários. É preciso que esse homem que perdeu o sentido do amor e o sentido do ser, esse homem antropocêntrico dos nossos dias encontre realmente a resposta às suas inquietações. Mas que essa resposta não seja uma psicoterapia mal orientada que procure, com artimanhas do espírito, destruir a milenar sabedoria e, principalmente, abafar o grito da consciência. Mesmo porque esta adormece, mas não morre. Como o autor do “Gênio do Cristianismo” poderíamos terminar interrogando: “Pourquoi y a-t-il une voix dans le sang, une parole dans la pierre?” O tigre dilacera a sua presa e dorme, mas é longa a vigília do homicida”. (20)
Notas
(1) Doyle, Iracy. Nosologia Psiquiátrica. Rio, 1961, p. 16.
(2) Shakespoare, W. Rei Lear, ato II.
(3) Amoroso Lima, Alceu. “Diálogo da Igreja com o Mundo moderno”. Paz e Terra, I – 1:11 – 27 de Julho 1966.
(4) Maritain, Jacques. Raison et Raisons. Paris, Egloff, 1947, p. 167.
(5) Fromm, Erich.— O Dogma de Cristo. Rio, Zahar, 1964, p. 105.
(6) Fromm, Erich, obra citada, p. 114.
(7) Freud, S. Obras Completas. Vol. XVIII. Rio, Delta, p. 220.
(8) Allers, Rudolf. Freud. Estudo crítico da Psicanálise. 3ª ed. Porto, Tavares Martins, 1956, p. 341.
(9) Nuttin, Joseph. Um ponto de vista cristão na psicanálise. Service Social dans le Monde, 1952.
(10) Vogel, Gustav. Que sabemos acerca da alma? Petrópolis, Vozes, 1963. p. 151.
(11) Maritain, Jacques, op. cit., p. 169.
(12) Cerruti S. J., Pe. Pedro. A caminho da Verdade Suprema, p. 298.
(13) Simon, Jules (cit. por Cerruti, p. pág. 306).
(14) Cerruti, Pe. Pedro, op. cit., p. 327.
(15) Gemelli, A. & Zunini, G. Introduccion a la Psicologia. Barcelona, Luis Miracle Ed., 1953, p. 334.
(16) In: Pende, Nicola. Biologia e liberdade moral. Heresias do nosso tempo. Porto, Tavares Martins, 1956, p. 111.
(17) Riquet S. J., Michel. L’Eglise liberte du monde. Paris, Spes, 1955, p. 28.
(18) Rousseau, Jean-Jacques. Émile. Extr. de Leçons Françaises de Littérature et de Morale par MM Noel et De La Place. Bruxelles, 1862, p. 124.
(19) Lopes-Ibor, J. J. Le Monde attend l’Église. Paris, Fleurus, 1957, p. 196.
(20) Chateaubriand. Génie du Christianisme. Extr. de Leçons Françaises de Litt. et de Morale. Bruxelles, 1862, pág. 124.
(Em Católicos e medicina hoje. Anais do II Congresso Católico Brasileiro de Medicina. São Paulo, Faculdade de Medicina da USP, 1967)
(Dr. José Luís Campinho Pereira, carioca, foi neurologista e psiquiatra. Professor na Faculdade de Medicina de Vassouras, RJ, com doutorado na UFRJ em Psiquiatria e Saúde Mental)
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