liturgia antiga

[Padre Klaus Gamber (1919-1989) foi um liturgista católico alemão. Autor de A reforma da liturgia romana, foi um dos principais críticos das reformas litúrgicas ocorridas após o Concílio Vaticano II. Admirava-o o Papa Bento XVI, sendo uma das fontes inspiradoras do motu proprio Summorum Pontificum, de 2007, que veio para estimular a celebração da Missa antiga.]

No artigo “Quatrocentos anos de Missa Tridentina”, publicado em diversas revistas religiosas, o professor Rennings se aplicou a apresentar o novo missal, ou seja, o Ritus Modernus, como derivação natural e legítima da liturgia romana. Segundo o mencionado professor, a Missa de São Pio V teria existido por unicamente cento e trinta e quatro anos, ou seja, de 1570 a 1704, ano no qual apareceu com as modificações desejadas pelo Romano Pontífice de então. Continuando com tal modo de proceder, Paulo VI, segundo Rennings, teria por sua vez reformado o Missale romanum para permitir aos fiéis conhecer um pouco mais da inconcebível grandeza que o Senhor concedeu à sua Igreja através da Eucaristia.

Em seu artigo, Rennings habilmente se aferrou a um ponto fraco dos tradicionalistas: a expressão Missa Tridentina ou Missa de São Pio V. Propriamente falando, nunca existiu uma Missa Tridentina ou de São Pio V, já que, seguindo as instâncias do Concílio de Trento, não foi formado um Novus Ordo Missae: o Missale sancti Pii V não é mais que o Missal da Cúria Romana, que foi se formando em Roma muitos séculos antes, e difundido, especialmente pelos franciscanos, em numerosas regiões do Ocidente. As modificações efetuadas em sua época por São Pio V são tão pequenas, que são perceptíveis tão somente pelo olhar dos especialistas.

Agora, um dos expedientes a que recorre Rennings consiste em confundir o Ordo Missae com o Proprium das missas dos diferentes dias e das diferentes festas. Os Papas, até Paulo VI, não modificaram o Ordo Missae, mesmo introduzindo novos próprios para novas festas, o que não destrói a chamada Missa Tridentina mais do que os acréscimos ao Código Civil destruiriam o mesmo.

Deixando, portanto, de lado a expressão imprópria de Missa Tridentina, falamos mais propriamente de um Ritus Romanus.

O rito romano remonta, em suas partes mais importantes, pelo menos ao século V, mais precisamente ao Papa São Dâmaso (366-384). O Canon Missae, com exceção de alguns retoques efetuados por São Gregório Magno (590-604), alcançou com São Gelásio (492-496) a forma que conservou até há pouco. A única coisa sobre a qual os Romanos Pontífices não cessaram de insistir, do século V em diante, foi sobre a importância para todos de adotar o Canon Missae Romanae, que remonta nada menos que ao próprio Apóstolo Pedro. Respeitaram o uso das Igrejas locais tanto no que concerne às outras partes do Ordo, como no Proprium das várias Missas.

Até São Gregório Magno (590-604) não existiu um missal oficial com o Proprium das várias Missas do ano. O Liber Sacramentorum foi redigido a pedido de São Gregório, no princípio de seu pontificado, para serviço e uso das Stationes que tinham lugar em Roma, ou seja, para a liturgia pontifical. São Gregório não teve nenhuma intenção de impor o Proprium do dito missal a todas as Igrejas do Ocidente. Se, posteriormente, o dito missal se converteu no próprio esboço do Missale Romanum de São Pio V, deve-se a uma série de fatores dos quais não podemos tratar agora.

É interessante notar que, quando se interrogou a São Bonifácio (672-754), que se encontrava em Roma, a respeito de algum detalhe litúrgico, como o uso dos sinais da cruz a serem feitos durante o cânon, este não se referiu ao sacramentário de São Gregório, mas ao que era usado pelos Anglo-saxões, cujo cânon estava totalmente de acordo com aquele da Igreja de Roma.

Na Idade Média, as dioceses e as igrejas que não tinham adotado, espontaneamente, o Missal utilizado em Roma, usavam um próprio; por isto, nenhum Papa manifestou surpresa ou desagrado. Mas quando a defesa contra o protestantismo tornou necessário um Concílio, o Concílio de Trento encarregou o Papa de publicar um missal corrigido e uniforme para todos. Assim, eu não posso, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, encontrar em tal deliberação do Concílio o ecumenismo enxergado por Rennings.

O que fez São Pio V? Como já dissemos, tomou o missal em uso em Roma e em tantos outros lugares, dando-lhe alguns retoques, especialmente reduzindo o número das festas dos Santos que continha. Tornou-o obrigatório para toda a Igreja? Em absoluto! Respeitou até as tradições locais que pudessem se gloriar de ter, pelo menos, duzentos anos de idade. Ou seja: era suficiente que o missal estivesse em uso por, pelo menos, duzentos anos, para que pudesse continuar em uso, em vez daquele publicado por São Pio V. O fato de que o Missale Romanum tenha se difundido tão rapidamente, e espontaneamente adotado até em dioceses que já tinham o próprio mais que bicentenário, deve-se a outras causas; não, certamente, por pressão vinda de Roma. Roma não exerceu sobre elas nenhuma pressão, e isto numa época em que, bem diferente do que ocorre hoje, ainda não se falava de pluralismo, nem de tolerância.

O primeiro Papa que ousou inovar o Missal tradicional foi Pio XII, quando modificou a liturgia da Semana Santa. Seja-nos permitido observar, a respeito, que nada impedia de restabelecer a Missa do Sábado Santo no decorrer da noite de Páscoa, ainda que sem modificar o rito.

João XXIII o seguiu por este caminho, retocando as rubricas. Mas nem um nem o outro ousaram inovar sobre o Ordo Missae, que continuou invariável. Contudo, a porta já tinha sido aberta, e por ela entraram aqueles que queriam uma substituição radical da liturgia tradicional — e conseguiram. Nós, que assistimos com espanto a esta resolução, contemplamos agora diante de nós as ruínas, não da Missa Tridentina, mas da antiga e tradicional Missa Romana, que se tinha aperfeiçoado através dos séculos, até alcançar a sua maturidade. Não era perfeita ao ponto de não poder ser posteriormente aperfeiçoável; no entanto, para adaptá-la ao homem de hoje, não havia necessidade de substituí-la: bastavam alguns pequeníssimos retoques, deixando a salvo e imutável todo o resto.

Ao contrário, quiseram suprimi-la e substituí-la com uma liturgia nova, preparada com precipitação e, diríamos nós, artificialmente, com o Ritus Modernus. Como vai ficando evidente, de modo sempre mais claro e alarmante, o oculto fundo teológico desta reforma! Era fácil obter uma mais ativa participação dos fiéis nos santos mistérios, segundo as disposições conciliares, sem necessidade de transformar o rito tradicional.

Contudo, a meta dos reformadores não era obter uma tal e mais ativa participação dos fiéis, senão fabricar um rito que expressasse a sua nova teologia, aquela mesma que está na base dos novos catecismos escolares. Já se veem, agora, as consequências desastrosas que só se revelarão, plenamente, daqui uns cinquenta anos.

Para atingir seus objetivos, os progressistas souberam explorar, muito habilmente, a obediência às prescrições romanas dos sacerdotes e dos féis mais dóceis. A fidelidade e o respeito, devidos ao Pai da Cristandade, não chegam ao ponto de exigir uma aceitação, desprovida do necessário senso crítico, de todas as novidades introduzidas em nome do Papa.

A fidelidade à Fé, antes de tudo! E é a Fé, parece-me, que se encontra em perigo com a nova liturgia, ainda que não me atreva a declarar inválida a Missa celebrada segundo o Ritus Modernus.

Será que ainda veremos a Cúria Romana e certos bispos – aqueles mesmos que nos querem obrigar, com suas ameaças, a adotar o Ritus Modernus – descuidar de seu próprio e específico dever de defensores da Fé, permitindo que certos professores de teologia enterrem os dogmas mais fundamentais de nossa Fé, e aos discípulos dos mesmos propagar ditas opiniões heréticas em periódicos, livros e catecismos?

O Ritus Romanus permanece como o último rochedo em meio à tempestade. Os inovadores sabem muito bem disso. É daqui que parte o seu ódio furioso contra o Ritus Romanus, que combatem sob o pretexto de combater uma jamais existente Missa Tridentina. Conservar o Ritus Romanus não é uma questão de estética; para nossa Santa Fé, é uma questão de vida ou morte.

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