[Para dirigir os Exercícios Espirituais da quaresma de 2007, Papa Bento XVI convidou o Arcebispo emérito de Bolonha, Cardeal Giacomo Biffi (1928-2015), notável não só por sua fidelidade à Igreja, como também pelo refinado senso de humor, que algumas vezes lembra Chesterton. No dia 27 de fevereiro, leu a sua primeira conferência diante do pontífice e seus colaboradores da Cúria. O assunto era sobre “o senhorio de Cristo sobre o cosmos e a história”, e, como porta de entrada ao tema, o Cardeal analisou um conto longo do filósofo russo Vladimir Soloviev, morto aos quarenta e sete anos, em 1900, depois de convertido da Ortodoxia ao catolicismo romano. O conto se intitula “O Anticristo” e faz parte da última obra pelo filósofo, Três diálogos. Sobre a guerra, a moral e a religião, publicada em 1899.]
Ao fim do século XIX a mentalidade mais corrente previa que o século que estava para começar trazia consigo progresso, prosperidade e paz. Victor Hugo, ao fim do século, havia profetizado: “Este século foi grande, o próximo século será feliz”.
1. Soloviev não se deixa contagiar por tal ingenuidade laicista e, na sua última obra, Os três diálogos e um conto sobre o Anticristo, datada da páscoa de 1900, poucos meses antes de morrer, prevê que o século XX seria marcado por grandes guerras, por grandes revoluções cruentas, por grandes lutas civis. Ao final do século, os povos europeus – persuadidos dos graves danos derivados das suas rivalidades – dariam origem, disse, aos Estados Unidos da Europa “mas… os problemas da vida e da morte, do destino final do mundo e do homem, tornando-se mais complicados e intrincados por uma avalanche de pesquisas e de novas descobertas nos campos fisiológico e psicológico permanecem, como antigamente, sem solução. Vem à luz um único resultado importante, mas de caráter negativo: a completa falência do materialismo teórico”. Isso não vai, entretanto, aumentar ou fortalecer a fé. Ao contrário, a incredulidade será rampante. Então, ao final teremos para a civilização europeia uma situação que poderia ser definida como vazia. Esse vácuo apenas faz emergir e afirmar a presença e a ação do Anticristo.
2. Mais do que o evento imaginado por Soloviev – no qual o Anticristo primeiro vem a ser eleito presidente dos Estados Unidos da Europa, e depois é proclamado Imperador Romano, se apossa do mundo inteiro e ao final se impõe também contra a vida e a organização das Igrejas – é relevante relembrar as características atribuídas a esse personagem. Era – disse Soloviev – “um convicto espiritualista”. Acreditava no bem e até mesmo em Deus, “mas amava somente a si mesmo”. Era um asceta, um estudioso, um filantropo. Dava “grandes demonstrações de moderação, de desinteresse e de ativa beneficência”. Na sua juventude havia se destacado como um culto exegeta: uma volumosa obra sua de estudo bíblico lhe proporcionou um doutorado ad honorem por parte da Universidade de Tubinga. Mas o livro que lhe proporcionará fama e consenso universal levará o título: “O caminho aberto sobre a paz e a prosperidade universal”, onde “se uniram o nobre respeito pelas tradições e símbolos antigos com um vasto e audaz radicalismo de exigências e diretivas sociais e políticas, uma liberdade sem limites de pensamento com a mais profunda compreensão de tudo aquilo que é místico, o absoluto individualismo com um ardente direcionamento ao bem comum, o mais elevado idealismo em termos de princípios diretivos com a precisão completa e a vitalidade das soluções práticas”. É verdade que alguns homens de fé se perguntariam por que o nome de Cristo não era mencionado nenhuma vez; mas outros os rebatiam: “A partir do momento que o conteúdo do livro é permeado de verdadeiro espírito cristão, do amor ativo e da benevolência universal, o que mais vocês querem?”. Por outro lado, ele “não terá por Cristo uma hostilidade de princípio”. Na verdade ele apreciava a sua reta intenção e o seu altíssimo ensinamento. Três coisas de Jesus, entretanto, ele consideraria inaceitáveis. Em primeiro lugar as suas preocupações morais. “O Cristo– afirmaria – dividiu os homens entre bons e maus com seu moralismo, entretanto eu os unirei por meio dos benefícios que são igualmente necessários aos bons e aos maus”. Além disso, não lhe agradava “a sua absoluta unidade”. Ele é um entre tantos; ou melhor – dizia para si – foi o meu precursor, pois o salvador perfeito e definitivo sou eu, que purifiquei sua mensagem daquilo que é inaceitável aos homens de hoje. E acima de tudo, não podia aceitar que Cristo estivesse vivo, e por conta disso repetia histericamente: “Ele não está entre os vivos e nunca o estará. Não ressuscitou, não ressuscitou, não ressuscitou! Apodreceu, apodreceu no sepulcro…”.
3. Mas onde a exposição de Soloviev se mostra particularmente original e surpreendente – e merecedora de reflexões mais profundas – é na atribuição ao Anticristo das qualidades de pacifista, ecologista e ecumenista.
I. Já se viu que a paz e a prosperidade são os argumentos das obras-primas literárias dos nossos heróis. Mas são ideias que ele será bem sucedido em implantar. No segundo ano de reinado, como Imperador Romano e Universal, poderá emitir o pronunciamento: “Povos da terra! Eu vos prometi a paz e eu a dei a vocês”. E justamente por causa disso surgirá nele a ideia de sua superioridade em relação ao Filho de Deus: “Cristo trouxe a espada, eu trarei a paz”. Para melhor compreender o pensamento de Soloviev sobre esse ponto, pode-se citar o que ele disse no terceiro diálogo pela boca do senhor Z., o interlocutor que representa o autor: “Cristo veio à terra trazer a verdade, e essa, como o bem, primeiro divide”. “Existe por conseguinte – disse Soloviev – a paz boa, a paz cristã, baseada sobre aquela divisão que Cristo veio trazer sobre a terra precisamente com a separação entre o bem e o mal, entra a verdade e a mentira; e há a paz ruim, a paz do mundo, fundada sobre a união exterior daquilo que interiormente está em guerra”. Quanto ao pensamento sobre a guerra no sentido mais comum e óbvio do termo, recordemos que o primeiro dos três diálogos “solovievianos” e todo dedicado à crítica do pacifismo tolstoiano e da doutrina da não-violência. A guerra – afirma – é certamente um mal, mas é necessário reconhecer que, seja na vida do indivíduo seja na vida da nação, ocorrem situações onde não bastam avisos ou boas palavras para responder às agressões. Podemos dizer que, segundo Soloviev, enquanto os ideais de paz e de fraternidade são valores indiscutivelmente cristãos, não o podem ser considerados o pacifismo e a teoria da não-violência que muitas vezes resultam em tolerância a prevaricações e à um abandono indefeso dos pequenos e dos fracos à mercê dos maus e dos prepotentes.
II. O Anticristo será também um ecologista ou ao menos um defensor dos animais. São termos modernos que obviamente Soloviev não usava; mas a sua descrição é bastante clara: “O novo senhor da terra – dizia – era em primeiro lugar um filantropo, cheio de compaixão, não só amigo dos homens como também dos animais. Pessoalmente era vegetariano, proíbe as vivissecções e submete os matadouros à uma severa vigilância; as sociedades protetoras dos animais serão encorajadas por ele de todas as maneiras”.
III. O Anticristo por fim se mostrará um excelente ecumenista, capaz de dialogar “com palavras cheias de doçura, sabedoria e eloquência”. Convocará os representantes de todas as denominações cristãs a “um concílio ecumênico sob sua presidência”. A sua ação buscara o consenso de todos através da concessão de favores. “Se vocês não são capazes de chegar a um acordo– dirá aos convocados da reunião ecumênica – espero ser eu a pô-los em acordo, mostrando a todos o mesmo amor e a mesma solicitude para satisfazer de cada um a verdadeira aspiração”. Porá em prática esse projeto, devolvendo aos católicos o poder temporal do Papa, erigindo para os ortodoxos um instituto para a conservação de todos os preciosos paramentos litúrgicos da tradição oriental, criando ao benefício dos protestantes um centro de pesquisa bíblica livre, generosamente financiado. É um ecumenismo exterior e “quantitativo”, que lhe servirá perfeitamente: as massas de cristãos entraram no seu jogo. Somente um grupelho de católicos liderados pelo Papa Pedro II, um pequeno grupo de ortodoxos guiados por João e alguns protestantes exprimindo-se pela boca do professor Pauli resistiram ao fascínio do Anticristo. Eles viram para promover o ecumenismo da Verdade, reunindo-se em uma única Igreja e reconhecendo o primado de Pedro. Mas será um ecumenismo “escatológico”, realizado quando a história já estiver perto da sua conclusão: “Assim– conta Soloviev – faz-se a união das Igrejas no coração de uma noite escura à uma altura solitária. Mas a escuridão da noite será repentinamente rasgada por um vivido esplendor e no céu aparecerá um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”.
4. Qual é então a “advertência profética” que aproxima o nosso tempo dessa espécie de parábola do grande filósofo russo? Virão dias, nos disse Soloviev, em que o cristianismo tenderá a reduzir o fundamento da salvação, que não pode ser aceita se não pelo ato difícil, corajoso, concreto e racional da fé, a uma série de “valores” facilmente negociados no mercado mundano. É desse risco que devemos nos proteger. Mesmo se um cristianismo que falasse somente de “valores” amplamente compartilháveis se mostrasse infinitamente mais aceitável ao público, nas congregações sociais e na política, nas transmissões de televisão, não podemos e não devemos renunciar ao cristianismo “de Jesus Cristo”, o cristianismo que possui em seu centro o “escândalo” da Cruz e a realidade perturbadora da ressurreição do Senhor. Este perigo – devo acrescentar – na sociedade dos nossos tempos não é puramente hipotético. Pe. Divo Barsotti disse algo assustador, mas de atualidade incontestável: Em muitas propostas, em muitas iniciativas, em muitos discursos das nossas comunidades– afirmava – Jesus Cristo é uma desculpa para falar de outra coisa. O Filho de Deus crucificado e ressurgido, único Salvador dos homens, não é “transferível” a uma série de bons projetos e de boas intenções, verificáveis na mentalidade mundana dominante. É uma “pedra”, como ele próprio referiu-se à si mesmo – e como nós mesmos raramente temos coragem de repetir -: sobre essa “pedra”, ou (crendo) se constrói ou (contrapondo-se) nos esmagamos: “[Aquele que tropeçar nesta pedra, far-se-á em pedaços; e aquele sobre quem ela cair será esmagado.]” (Mt 21,44).
5. São necessários alguns esclarecimentos sobre esse ponto. É indiscutível que o cristianismo é, antes de mais nada, um “evento”; mas também indiscutível que esse evento propõe e sustenta “valores irrenunciáveis”. Claro que não se pode, por amor ao diálogo, desintegrar o fato cristão em uma série de valores compartilháveis pela maioria; mas não se pode tão pouco desestimular os valores autênticos como se fosse algo insignificante. É, portanto, necessário discernimento. Há valores absolutos – ou, como dizem os filósofos, transcendentais – tais como, por exemplo, a verdade, o bem, o belo. Quem os percebe e os honra e ama, percebe, honra e ama Jesus Cristo, mesmo se não o sabe e talvez se considere ateu, por que no ser profundo das coisas, Cristo é a verdade, a justiça, a beleza. Há valores relativos (ou categóricos), como o culto à solidariedade, o amor à paz, o respeito pela natureza, a disposição ao diálogo, etc. Esses merecem um juízo mais articulado, que preserve a reflexão em toda a sua ambiguidade. Solidariedade, paz, natureza, diálogo podem proporcional ao não-cristão ocasiões concretas para uma aproximação com Cristo e Seu Mistério. Mas se dá atenção à eles ao ponto de que se absolutizem até perderem toda a sua raiz objetiva ou, pior, até se contraporem ao anúncio do fato salvífico, então se tornam instigações à idolatria e obstáculos no caminho da salvação. Do mesmo modo, no cristão, esses mesmos valores – solidariedade, paz, natureza, diálogo – podem oferecer precisos impulsos à realização de uma total e apaixonada adesão a Jesus, Senhor do universo e da história; é, por exemplo, o caso de São Francisco de Assis. Mas se o cristão, por amor à abertura ao mundo e da boa relação com todos, quase sem perceber dissolve substancialmente o fato salvífico na exaltação e na realização destes objetivos secundários, então ele se impede de conhecer pessoalmente o Filho de Deus crucificado e ressuscitado, e cai pouco a pouco no pecado da apostasia, e encontra-se ao final ao lado do Anticristo.
6. No prefácio de “Os três diálogos”, Soloviev conta que, naquele tempo, em alguma província da Rússia começava a difundir-se uma nova religião, que havia simplificado bastante a sua atividade de culto. Os seus adeptos “depois de fazerem em algum canto escuro da parede do isbá, um buraco de tamanho médio… colocavam os lábios sobre o buraco e repetiam muitas vezes com insistência: meu isbá, meu buraco, salve-me!”. Nessa incrível bizarrice – nota Soloviev – havia ao menos a virtude do uso correto dos termos: “Chamam o isbá de isbá e o buraco… de buraco”. No nosso mundo há algo pior, continua o filósofo, implacavelmente. “O homem perdeu sua antiga franqueza. O seu isbá recebeu a nome de “reino de Deus na terra”; quanto ao buraco, começaram a chama-lo de ‘novo evangelho’” (Aqui a polêmica com Tolstoi é franca e até feroz). Mas o cristianismo sem Cristo e sem a boa nova de uma real e pessoal ressurreição “é a mesma coisa que um espaço vazio, como um simples buraco, feito no isbá de um camponês”. Concluindo, me parece que também, e sobretudo, hoje estamos lutando contra uma cultura da pura e simples “abertura”, da liberdade sem limites, do nada existencial. Esta é a maior tragédia do nosso tempo. Mas a tragédia torna-se ainda maior quando se atribui a esse “nada”, a essas “aberturas”, a esses “buracos”, por amor ao diálogo, alguma enganosa etiqueta cristã. Fora de Cristo – pessoa concreta, realidade viva, evento – só há o “vazio” do homem e o seu desespero. Em Cristo, que é o pleroma do Pai, o homem encontra a sua plenitude e a sua única esperança. (Tradução de Italo Lorenzon Neto)
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