praia cheia

Comecemos com uma experiência muito simples, mas que dá muito o que pensar. Já aconteceu a todos que, quando experimentamos momentos de alegria particularmente intensa, sentimos dentro de nós o medo de que mais cedo ou mais tarde isso termine e, por isso, sentimos dentro de nós o desejo de que o tempo pare. Quem de nós nunca disse: é muito belo para que possa durar? Vamos pensar atentamente sobre essa experiência. A plenitude da alegria da vida é ameaçada pela passagem do tempo: o fato de que nossa vida seja tão dis-tendida no tempo impede-a de ser plena. Vivemos sempre uma “parte” da nossa vida, um “momento” de alegria, um “momento” de … É esse “passar” ou “transcorrer” do tempo que constitui uma ameaça permanente. Sentimos que o tempo é invejoso do nosso ser.

Agora vamos tentar fazer um pequeno esforço de imaginação. Vamos imaginar que nossa vida é sempre e exclusivamente essa passagem do tempo, um fluxo sem fim e, portanto, sem um propósito. Acho que ninguém expressou com mais força do que Leopardi essa experiência do homem que se sente prisioneiro do tempo; por exemplo, na “Canção Noturna de um pastor errante da Ásia”.

O homem experimentou  essa “maldade do tempo” e todas as religiões tentaram, fora do judaísmo e do cristianismo, libertá-lo. Em que consiste esse projeto de libertação? Em sair do tempo, em fugir do tempo. No fundo, o homem pensava que ser no tempo fosse uma doença incurável. Essa evasão pode ser projetada de dois modos.

O primeiro modo é característico das grandes religiões orientais. É necessário se perder a si mesmo, desaparecer em uma unidade informe. Esta é a libertação do místico hindu; essa é a bem-aventurança do budismo. O homem estaria totalmente libertado; estaria libertado porque prescinde de si mesmo; estaria libertado precisamente enquanto o “si mesmo” não fosse mais. A libertação consistiria no desaparecimento da própria individualidade na unidade indiferenciada do todo.

Mas não é tanto a este projeto de libertação que quero chamar a atenção. É sobre outro assunto: algo que hoje anda muito difundido, como uma espécie de “atmosfera” (pestilencial) que todos mais ou menos respiramos. E é sobretudo respirada pelos nossos jovens, constituindo um desafio fundamental à  proclamação do Evangelho entre eles.

A libertação do tempo parece possível e ao alcance, por assim dizer, de todos, facilmente. Como? Sempre e somente vivendo o momento presente, sem pensar no futuro e tentando esquecer o passado. É como uma espécie de macaqueação  da eternidade: uma eternidade, se assim posso dizer, construída pelo homem à sua medida. Um poeta latino e pagão descreveu admiravelmente essa solução. Horácio, na décima primeira ode do primeiro livro, disse o que segue:

“Não tente saber, oh Leuconoe (sabê-lo não é lícito) que fim os deuses reservaram a mim, ou a ti (…) Sê   sábio! (…)   Deixa bem guardadas as tuas grandes esperanças. Enquanto falamos, o minuto já passou, invejoso de nosso prazer. Aproveite o dia de hoje e confie no amanhã o mínimo possível”.

O centro desta proposta está, negativamente, naquele corte que deve ser dado à nossa existência (ao nosso desejo de viver) na medida exclusiva do momento presente; positivamente, consiste em viver apenas dentro do momento presente.

Tal postura existencial, tal “estilo de vida” impede a pessoa de viver sua existência como história. O que significa viver a própria existência como história? Vamos começar com um exemplo muito simples. O que distingue una narrativa qualquer de um verdadeiro conto? O conto tem uma trama, isto é, uma sucessão ordenada de episódios que, ao se conectarem, levam o leitor a uma conclusão que, de alguma forma, deriva de tudo o que precede. Ou seja: existe uma coerência interna no conto; essa coerência é dada por um fio condutor; a narração vai em direção ao desfecho. Portanto, identificamos pelo menos três elementos que compõem a narração de um conto: coerência, desenvolvimento e conclusão.

Da mesma forma acontece na vida. Se nossa vida é a soma de muitos instantes não relacionados entre si, se nossa vida carece de um “fio condutor” nela; se o escorrer do tempo não vai rumo a um certo fim, não tem direção e a vida da pessoa é totalmente desarticulada.

Kierkegaard viu nessa postura a própria definição de desespero: desespero, por assim dizer, em estado puro. A liberdade é exercitada como pura possibilidade [cf. A doença mortal]. Mas, acima de tudo, W. Shakespeare expressou com uma força insuperável este modo de vida: “Amanhã, volvendo trás amanhã e trás amanhã de novo. Vai, a pequenos passos, dia a dia, até a última sílaba do tempo inscrito. E todos esses nossos ontens têm alumiado aos tontos que nós somos nosso caminho para o pó da morte. Breve candeia, apaga-te! Que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada”. [Macbeth, Ato V, Cena V, trad. de Manuel Bandeira].

Qual é o sinal distintivo dessa condição? A necessidade de evasão. Como esse tipo de vida é verdadeiramente insuportável, é preciso sair dela ao menos por algumas vezes. Por isso, foi construída uma grande “indústria da evasão”. Tomemos, por exemplo, em consideração dois “produtos” dessa indústria do evasionismo, escolhidos não por acaso. Logo ficará claro o motivo.

O primeiro desses produtos foi a transformação radical do significado do o domingo. É o momento esperado em que, enfim, se pode esquecer a vida cotidiana, em vez de procurar entender seu significado e vivê-la com mais intensidade e paixão do que antes. E, de fato, quando se recomeça na segunda-feira, fica-se ansioso pela noite da sexta-feira seguinte, quando finalmente se poderá novamente “esquecer”… Dessa maneira, entramos em um  entediado e/ou desesperado retorno de sempre a mesma coisa: evasão para “suportar” o trabalho semanal; trabalho semanal esperando a fuga do fim de semana seguinte. Não importa que se chegue com frequência, no domingo à noite, muito mais cansado do que descansado: o essencial é fugir, esquecer. Qual é o significado da passagem do tempo para quem pensa e vive assim? No fundo, uma maldição da qual, quando possível, escapar.

O segundo produto da indústria da evasão, sobre o qual gostaria de chamar a atenção, é a “comercialização do sexo”. Não se pense imediatamente em sua forma macroscópica. Existe uma forma muito sutil. Consiste em reduzir a sexualidade humana a um “bem de consumo”. É o resultado de um processo cultural muito complexo, do qual só podemos lembrar a essência. Foi um processo de sucessivas “separações”: o corpo e a pessoa; a sexualidade e o amor, a sexualidade e o dom da vida. O resultado foi a redução da sexualidade a mero divertimento: hoje é completamente aceitável que sexualidade e casamento possam caminhar separados. A destruição do sentido da sexualidade é um índice da consciência da maldição do tempo, pois, através do dom da vida, o homem sempre procurou, de alguma maneira, a eternidade.

Termino este primeiro ponto da minha reflexão. Duas coisas, basicamente, foram destacadas. A primeira: ser no tempo é um fardo insuportável para o homem. A segunda: a única salvação contra o tempo é a fuga, a evasão. Uma fuga e uma evasão que custam um preço muito alto: a perda de si mesmo.

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