[Em recente editorial do principal jornal italiano, Corriere della Sera, o conhecido historiador e jornalista Ernesto Galli della Loggia, não católico, analisa alguns elementos ideológicos do pontificado de Papa Francisco].
Atualmente, é comum observar o caráter profundamente político do pontificado do Papa Bergoglio. Na verdade, porém, em vez de político, o seu parece ser um pontificado ideológico, e as duas coisas não são de modo algum a mesma coisa: podem até entrar em conflito.
Desde a era Constantiniana, a Igreja sempre fez política: além de ser um fato de enorme importância histórica, é um dado de sua identidade — autopercebida como uma “sociedade perfeita”, completamente independente dos demais poderes. Sempre atuou com plena consciência de sua própria força, representada pela capacidade de orientar de maneira significativa, muitas vezes de forma decisiva, os valores e comportamentos de grandes massas de homens e mulheres. Sempre fez política para afirmar ou defender seus próprios interesses e valores (quaisquer que fossem eles), o que sempre significou algo mais: buscar compreender e interpretar os movimentos gerais, no interior do sistema dos Estados, a fim de afirmar a sua própria e peculiar presença.
Esse quadro geral, no entanto, tende a sofrer uma mudança significativa com a chegada de Bergoglio. Faz sorrir a acusação, feita por alguns setores radicais, dele haver deixado de lado a doutrina católica. O fato, porém, é que, assim que ultrapassa o âmbito das cerimônias e ritos, o discurso público de Francisco tende a perder toda a especificidade de tipo religiosa. Certamente, o apelo à justiça social, a defesa dos fracos e oprimidos, a uma distribuição mais equitativa das riquezas naturais entre os povos, o convite a não interferir irreparavelmente nos bens naturais, tudo isto está substancialmente em harmonia com a substância da mensagem cristã. Essa mensagem, no entanto, termina por ser fortemente modificada em seu significado geral — além da mencionada ausência de marcantes especificidades de tipo religioso — por algumas características típicas do rumo que Bergoglio lhe imprime e que, como frisei no início, conduzem suas palavras a um terreno que assinala uma ruptura relativamente à tradição do magistério papal.
São dois os fatores particularmente dignos de nota.
Em primeiro lugar, os destinatários. Em vez de genericamente aos “homens de boa vontade”, aos “governantes”, às “autoridades responsáveis”, ao mundo, ou a grupos específicos designados por suas atividades (parteiras, policiais, gerentes) — costume antigo que se mantinha até pouco tempo — o Papa atual, em vez disso, prefere cada vez mais voltar-se mais ou menos diretamente (até escolhendo-os como seu público preferencial) a pessoas vítimas de situações negativas: aos “povos”, aos “movimentos populares” ou a outros interlocutores semelhantes; porém sempre escolhidos, eu diria, de uma única faixa social (os menos favorecidos). Uma escolha que é ainda mais significativa, pois deixa evidente que é aos discursos a ele dirigidos que o próprio Francisco atribui o maior significado para definir o caráter de seu pontificado.
O segundo elemento de ruptura diz respeito ao conteúdo não estritamente confessional do discurso papal. O que é surpreendente aqui é o abandono substancial da “doutrina social da Igreja” que prevalecera de Leão XIII até João Paulo II e que era caracterizada por sua posição, sempre reiterada, de centro entre o capitalismo liberal e o estatismo socialista. Igualmente claro é o abandono substancial de outra tendência típica da pastoral pontifícia: isto é, o universalismo humanista tão central nas principais resoluções do Vaticano II. Em vez de tudo isso, no discurso de Bergoglio domina, juntamente com um marcante desdém pela experiência cultural do Ocidente e uma hostilidade muito clara para com o capitalismo e para com os Estados Unidos, uma forte simpatia pelas iniciativas espontâneas vindas de “baixo” e pela auto-organização popular, a consequente aversão a tudo o que tem gosto de coisa institucionalizada, oficial, formal, bem como o compartilhamento geral de expectativas e escolhas feitas por grupos marginais e, finalmente, a esperança de uma espécie de economia natural-comunitária de base igualitária, da qual é expressão a proposta recentemente feita pelo próprio Francisco de uma não especificada “renda universal”.
São, todas elas, coisas certamente mais do que compatíveis, e, em certo sentido, até mesmo intrínsecas, à mensagem do Evangelho. No entanto, mudam de sentido quando, como acontece no discurso de Bergoglio, a mensagem do Evangelho e sua ligação com o depositum fidei católico tendem a ser colocadas em segundo plano, até desaparecerem. Prova-o a ausência generalizada nesse mesmo discurso, por exemplo, de qualquer exortação à necessidade de arrependimento e conversão; a descobrir o significado cristão da vida e da morte, a verdade da transcendência, que é o elemento constitutivo de toda religião. É assim que, no final, esse discurso, desprovido de uma significativa inervação religiosa, permanece apenas um discurso ideológico, de uma ideologia de fundo populístico-comunitário-anticapitalístico, não muito diferente de outras em circulação, especialmente no hemisfério sul.
O fato é que foi precisamente aquela inervação religiosa, essa capacidade de confrontar a religião com o mundo, agora extinta ou completamente à margem, que sempre fez a força política da Igreja. Foi precisamente aquele entrelaçamento particular entre religião e práxis mundana que indicou à instituição eclesiástica a direção de seu compromisso e, ao mesmo tempo, as formas concretas de cumpri-lo. Hoje, ao contrário, justamente por ser a portadora de um discurso que só parece interessado em purificar o social-histórico de qualquer apelo religioso eficaz e, portanto, exclusivamente ideológico, a Igreja encontra grande dificuldade de fazer verdadeira política, de estar presente, com seu próprio perfil e sua própria força, em situações políticas concretas.
Escolho dois exemplos a esse respeito. O primeiro: há algum tempo — mais do que nunca, após a epidemia do Covid 19 — a União Europeia foi internamente atravessada por divisões e confrontos entre Sul e Norte. Um grupo de países do sul da Europa (Itália, França, Espanha, Portugal) se contrapõe a um grupo de países do norte (com Alemanha, Holanda e Finlândia na liderança) em uma série de questões que, em última análise, dizem respeito aos valores sociais e políticos fundamentais que devem prevalecer em uma coletividade; e dá-se o caso (um caso talvez não inteiramente casual) que os países do primeiro grupo sejam quase todos de tradição católica.
Segundo exemplo: não é de hoje (porém hoje mais do que nunca) que a base dos equilíbrios mundiais (não apenas políticos ou econômicos), em vigor por mais de meio século, está mudando dramaticamente devido ao ativismo inédito e sem preconceitos de duas gigantescas áreas político-culturais: a russa e a chinesa, ambas indiferentes aos direitos humanos e mais ainda à liberdade religiosa.
Bem, talvez eu tenha me distraído, mas em cada uma dessas duas malhas de problemas, com inúmeras e decisivas implicações para o futuro do mundo, alguém tem notícias de uma tomada de posição digna de nota, de um gesto verdadeiramente significativo, de uma iniciativa relevante, de qualquer coisa, enfim, que tenha saído da parte da Santa Sé ou da Igreja Católica?
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