Um pensamento corrente entre os novos padres — e, por consequência, entre os leigos — é o de que não há religião melhor que as demais, nenhuma salva mais que as outras. Todos são “cristãos anônimos”, como queria Karl Rahner.
É exatamente o contrário do que a Igreja sempre ensinou. Não é preciso muito esforço para desdobrar esse conceito em suas consequências práticas e ver o que os fiéis fariam de suas vidas, se o assimilassem de fato. Seria uma verdadeira revolução teológica e existencial, caindo por terra as quatro colunas básicas da Igreja: os dogmas, os sacramentos, a moral cristã e a vida de oração. Se todas as religiões se equivalem, é inevitável o indiferentismo: tanto faz estar nesta ou naquela. É o fim da Igreja e do cristianismo.
O IV Concílio de Latrão, convocado em 1215 pelo Papa Inocêncio III, definiu com clareza o dogma da salvação como obra exclusiva da Igreja: “…apenas uma é a Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém é salvo”. (nº 430 do Dentzinger) São Cipriano e Orígenes já o diziam, no terceiro século da Igreja: “Não há salvação fora da Igreja”. Jesus mesmo o disse, no final do Evangelho de São Marcos (16, 15-16): “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”. Ou em São Lucas (10, 16): “Quem vos ouve a mim ouve; e quem vos rejeita a mim rejeita”. E ainda em São João (20, 23): “Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, lhes serão retidos”.
O Vaticano II não rompeu com esse velho dogma do “Extra Ecclesiam nulla salus” (“Fora da Igreja não há salvação”). É o que afirma o parágrafo 14 da “Lumen gentium”: “O sagrado Concílio volta-se primeiramente para os fiéis católicos. Fundado na Escritura e Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Se-nos presente no Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Baptismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do Baptismo. Pelo que, não se poderiam salvar aqueles que, não ignorando ter sido a Igreja católica fundada por Deus, por meio de Jesus Cristo, como necessária, contudo, ou não querem entrar nela ou nela não querem perseverar”.
O parágrafo 846 do Catecismo da Igreja Católica repete-o: “…não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar ou nela perseverar.” E, nos 847 e 848, esclarece a questão complicada da salvação daqueles que, sem culpa, desconhecem Cristo e sua Igreja: “Aqueles, portanto, que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a sua vontade conhecida por meio do ditame da consciência podem conseguir a salvação eterna”. (…) “Deus pode, por caminhos dele conhecidos, levar à fé todos os homens que sem culpa própria ignoram o Evangelho. Pois ‘sem a fé é impossível agradar-lhe’ Mesmo assim, cabe à Igreja o dever e também o direito sagrado de evangelizar” todos os homens.”
Sabe-se, infelizmente, que uma coisa são os documentos conciliares, outra é a utilização de má fé que deles fazem certos progressistas, baseados no tal “espírito do Concílio”, que estaria à frente dos próprios documentos e inspirado numa “nova teologia” (que Monsenhor Antonio Livi, tomista recém-falecido da Gregoriana, no livro Verdadeira e falsa teologia, prefere chamar de “filosofia religiosa”, pois para ser teologia católica deve mover-se no âmbito estrito dos dogmas definidos pelo Magistério).
Não é difícil imaginar o conflito que experimentaram (e experimentam) os seminaristas das últimas cinco décadas, quando professores de eclesiologia nos seminários afirmavam categoricamente que a doutrina do “extra Ecclesiam nulla salus” já está superada; ou quando professores de teologia moral afirmavam que um casamento de segunda união, depois de um certo tempo de durabilidade, é mais válido do que o primeiro — futuros padres postos diante de um quadro de confrontação em que, de um lado, está a velha Igreja pré-conciliar, e de outro a nova Igreja pós-conciliar, devendo optar por uma “hermenêutica da descontinuidade”, em vez da “hermenêutica da continuidade” (para usar os termos do cardeal Ratzinger).
Muitos padres, bispos e leigos de hoje certamente concordariam com a seguinte reflexão do personagem Riobaldo, no romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa:
“O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.” (Guimarães Rosa, Grande sertão:veredas, p. 15)
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