A observação e a experimentação, métodos de investigação científica, definem psicologicamente duas famílias de espíritos, como as “raízes e caramujos”, de que falava o poeta Carlos Drummond de Andrade num poeminha talvez renegado pelo autor, já que não foi incluído em qualquer dos seus livros, o que aliás, parece atitude de excessivo rigor. É certo que o poeminha não acrescentaria à obra do poeta senão o registro de um momento, possivelmente menos importante, para o autor. Para o leitor, porém, e para o estudo do poeta, esse momento interessa. Não havia por que suprimi-lo, uma vez que não é um simples esboço inacabado, cujo recolhimento exigiria classificação à parte e publicação especial. O fato, entretanto, é que o poeta preferiu omiti-lo, embora não militem contra ele as razões que mantiveram impublicadas algumas outras manifestações da primeira fase revolucionária da poesia de Carlos Drummond. 

Voltando ao assunto, que é o das “grandes famílias espirituais”, constituídas a partir da adoção de um ou de outro daqueles dois métodos de investigação científica, notemos que a observação nos impõe principalmente uma disciplina crítica. Sua técnica é a da boca de espera, não a da iniciativa. Essa técnica nos submete às manifestações objetivas dos fenômenos em observação. Não é criadora, é interpretativa. Na interpretação é que intervirá, a seguir, a capacidade intuitiva de ligar entre si os fatos, de modo a conferir-lhes um sentido global que os integre numa explicação de conjunto. Mas, a submissão ao real é a marca definidora e característica do trabalho de observação e da atitude intelectual que ele impõe.

Essas características não podem estar ausentes das investigações experimentais, é claro. Não estão ausentes, mas nelas não predominam. A experimentação parte de uma construção criadora, que é submetida à verificação posterior. Uma hipótese é elaborada, é estudada em suas consequências. Se, na verificação experimental, estas ocorrerem conforme a hipótese, estará confirmada a construção. Se, ao contrário, os fatos não se ajustarem à teoria proposta para explicá-los, será preciso corrigir, modificar ou substituir a teoria, o que custa, muitas vezes, pesar e decepção profunda para seu autor. É como levar uma corrida de barbada e perdê-la, na regra, sem acidente, imperícia ou desculpa: perdê-la, simplesmente, porque a suposta barbada… não era.

Entre a bolação e a verificação experimental, corre o espírito um sério risco: o de perder-se na idolatria do que ele mesmo construiu. Projetando sua construção sobre os fatos, acaba por encobri-los, subestimá-los, desprezá-los como irrelevantes, em face da grandiosidade da concepção subjetiva. Essa atitude, contra a qual se previnem constantemente os homens de laboratório, em defesa da segurança das suas conclusões, decorre da ativação das qualidades propícias à concepção de novas hipóteses, com o poder da imaginação. Com sua força criadora, que continua a atuar ainda no momento de abster-se. A imaginação criadora costuma funcionar em correntes contínuas. Ela marca um estilo de comportamento diante das coisas. E pode existir, como efetivamente existe, sem a contrapartida dos controles a que o laboratório obriga.

Muitas indagações científicas que, sem embargo dessa condição, não se sujeitam às técnicas de laboratório, oferecem um campo imenso à expansão desse espírito criador, que usa a técnica científica apenas no que ela lhe possa aproveitar, isto é, enquanto trabalhe a seu favor, mas não hesita em abandoná-la, se acaso pressentir uma conclusão negativa nos seus resultados. Por esse caminho, não se constrói a ciência, mas a meia-ciência, que é uma contrafação, uma falsificação, uma perversão do conhecimento, mil vezes mais nefasta que a pura e santa ignorância indissimulada, autêntica.

(Em O Estado de São Paulo, 07/02/1969)