Há um poema de Bandeira que parece exprimir bem essa visão pessimista da vida. Foi escrito em abril de 1935, conforme testemunha do escritor Marques Rebelo. O ateu Rebelo assistia, na companhia do agnóstico Manuel Bandeira, à Missa de sétimo dia do contista Alcântara Machado. Os dois literatos pareciam sobrar na igreja entre deputados, políticos, funcionários da Câmara, magnatas da indústria e do comércio, pessoas que pouco ou nada tinham a ver com literatura.

Depois da Missa, já caminhando na rua, Bandeira tirou um papel do bolso e pediu a Rebelo que lesse:

— “Fiz ontem. Saiu de uma assentada”.

Era o poema “Momento num café”. O texto, magistralmente composto, falava de um enterro passando à frente de um café, no Rio de Janeiro. Os homens saíam à porta e saudavam o morto. Mas o faziam distraídos e maquinalmente, pois estavam todos voltados “para a vida, absortos na vida, confiantes na vida.” Todos com exceção de um — porta-voz do poeta —, que se descobriu “num gesto largo e demorado, olhando o esquife longamente. Este homem, ao contrário dos milhares de santos e sábios cristãos dos últimos dois mil anos, sabia o que só poucos iluminados sabiam: “que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, que a vida é traição, e saudava a matéria que passava liberta para sempre da alma extinta”.

O poema é curto:

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes da vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Marques Rebelo conta, em seu romance autobiográfico O espelho partido, que suas mãos tremiam com aquele pedaço de papel entre os dedos, numa espécie de integração total com aquilo que considerava a suprema verdade da vida e do ser — numa espécie de êxtase místico ateísta, se isto for possível —, exposta por Bandeira de maneira simples e no entanto terrível neste poema: o corpo humano, que passava no caixão a caminho do cemitério, para sempre liberto da alma já extinta. À mente cristã, é uma estranha e absurda concepção de liberdade, vinculada ao desaparecimento do que, no ser humano, lhe é mais caro: a alma.

“A vida é traição”, conclui o poeta. Não teria chegado à mesma conclusão aquele oficial da marinha inglesa, depois da perna quebrada e do desejo de salvar ninguém, no conto “O incêndio”, de Machado de Assis, que tem o próprio Manuel Bandeira em sua origem? (v. aqui)

Em seu “Ensaio de exegese de um poema de Manuel Bandeira”, publicado em 1944 na revista luso-brasileira Atlântico, um Otto Maria Carpeaux ainda católico fala em blasfêmia a propósito desse poema e insinua que poderia até ser lido pela ótica satanista. De fato, o maior sonho do demônio é que o homem deixe de crer na sobrevivência da alma e na existência de Deus, pois a partir daí tudo é permitido, como já ensinou Ivan Karamazov.

Certa vez, Bandeira demonstrou que não sabia mesmo o que fazer com a alma, embora seja ela a responsável por tantos e belos poemas do autor pernambucano: “Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. /A alma é que estraga o amor. /Só em Deus ela pode encontrar satisfação. /Não noutra alma. /Só em Deus — ou fora do mundo. /As almas são incomunicáveis. /Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. /Porque os corpos se entendem, mas as almas não.” (“A arte de amar”, em Belo belo)

No poema “Morte absoluta”, o poeta exprime o desejo de “Morrer de corpo e de alma. Completamente (…) Morrer sem deixar porventura uma alma errante… A caminho do céu? Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”

A exemplo de Fernando Pessoa, também se poderia retalhar a alma bandeiriana em alguns heterônimos conflitantes: o Bandeira que sonhava com uma Pasárgada toda hedonista, o Bandeira quase estoico do “Soneto inglês nº 2”, o Bandeira brutal e desesperadamente ateu que vimos acima (ou dos versos impacientes a Santa Teresinha de Lisieux e a Santa Rita, que de certo modo explicam a revolta gnóstica do poeta). E até o Bandeira que fazia versos de inesperada delicadeza a Nossa Senhora e à natividade divina de Jesus.