[O maranhense Cândido Mendes de Almeida foi um jurista, historiador e senador do Império, que viveu entre 1818 e 1881. Foi o advogado que defendeu, em 1874, o bispo Dom Vital, na célebre disputa conhecida como Questão Religiosa].

A Igreja Católica, como já notamos em outro lugar, é uma sociedade autônoma, independente e superior — seja pela sua origem, seja pelo seu fim — à sociedade civil ou temporal. Coluna da fé e depositária da verdade, nunca poderia estar sujeita a nenhuma associação temporal, por melhor que fosse sua organização e extraordinário o seu poder.

Por consequência, a Igreja possui os mesmos direitos de que estão revestidas todas as sociedades estabelecidas na terra, sobretudo do primeiro e o mais essencial, o que compreende e ampara todos os mais: a independência, a autonomia; queremos dizer, o direito de se governar por suas próprias leis, sem que, de nenhuma sorte, uma sociedade estranha possa constrangê-la ou a modificar suas leis, ou a aboli-las, ou a subordinar-se à legislação por outrem promulgada. Destes princípios resulta a consequência lógica que, quando uma sociedade temporal, violando a independência da Igreja, tenta impor-lhe sua lei, a Igreja tem o direito de resistir e de prescrever a seus filhos a obrigação de desobedecer a tais leis.

De outra sorte, não seria uma sociedade perfeita; ficaria exposta, a todo o momento, sua própria existência e a doutrina de que é a depositaria e a propagandista. Sua superioridade sobre tantas associações de curta vida, efêmeras, seria anulada, tornando-se sem fruto a vinda de Cristo ao Mundo, por isso que o instrumento que deixara para ensinar, e derramar sua doutrina, corria a tudo o momento o risco de inutilizar-se ou de ser destruído.

Sendo a Igreja infalível em suas decisões quanto ao dogma e a moral, como deve ser toda a sociedade espiritual, porque visa a um fim mui diferente e superior ao das associações temporais, como fazer valer essa prerrogativa, esse dom, sendo a Igreja subordinada a outro poder? Esse poder seria, em tais condições, o que gozaria da prerrogativa da infalibilidade. Com razão Grocio, Burlamachi e outros escritores protestantes atribuem ao Estado o direito de governar a Igreja, porquanto, como eles próprios reconhecem, as Igrejas de que são membros não gozam daquela prerrogativa; aliás, bem dispensável, visto que todo os protestantes a tem em sua razão individual.

É por isso que Luigi Taparelli d’Azeglio, em seu ensaio sobre o direito natural, diz que tais Igrejas não tem razão de existência, porque seria um contrassenso o fato de manter-se uma sociedade espiritual que confessa não estar de posse da verdade!

“A Igreja Católica, continua o mesmo autor, como sociedade espiritual é independente da ordem temporal; se ela não possuísse a verdade, não teria mais laço algum intelectual. Ora, sem um tal nexo, que fundo haveria para constituir uma sociedade espiritual?

“Por si mesma a Igreja reformada nada vale, é uma ficção: sua existência depende da razão de Estado, bem ou mal aplicada.

“E nesta parte os fatos estão de acordo com a metafísica! Sem o auxílio dos governos, onde estariam as Igrejas Anglicana, Luterana e Russa? Pelo contrário, a Igreja Católica subsiste não só sem o socorro do Poder Temporal, mas ainda a despeito das perseguições que encontra, e, assim, demonstra sua independência, com não menor evidência, no fato e no direito.”

A Igreja Católica, infalível no conhecimento e ensino da verdade, tem além disto, como sociedade espiritual, a condição necessária à salvação eterna do homem; e daí resulta, para aqueles que a seguem, príncipes ou súditos, que os seus dogmas e sua autoridade são obrigatórios, não havendo pretexto que escuse o cumprimento.

É por isso que todos os que se tornam refratários às suas leis caem sob a sua penalidade, e, não se submetendo, tornam-se seus adversários. A heresia e o cisma, que é também uma heresia indireta, são como tais considerados.

(Cândido Mendes de Almeida. Direito civil eclesiástico brasileiro, “Introdução”, p. XLII. Rio de Janeiro, Garnier, 1866)