[Nascido em 1945, na cidade de Seekirchen, Áustria, Josef Seifert é um filósofo católico. Foi aluno de Dietrich von Hildebrand, Robert Spaemann, Gabriel Marcel e esteve próximo de João Paulo II. Filosoficamente, procura aliar o método fenomenológico, depurado do idealismo husserliano, à tradição realista ocidental. Ensinou na Universidade de Salzburgo (Àustria), na Universidade de Dallas (Texas), onde fundou a International Academy of Philosophy, hoje com sedes na Pontifícia Universidade Católica do Chile e no Principado de Liechtenstein, do qual é reitor e professor de Filosofia desde 2012. É também professor associado da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Chile, em Santiago. Em 2016, foi proibido de ensinar no Instituto de Filosofia “Edith Stein”, da Arquidiocese de Granada, Espanha, devido a um ensaio crítico à exortação apostólica Amoris Laetitia, do Papa Francisco].

Uma das razões pelas quais o debate sobre as vacinas Covid-19 se tornou tão acalorado é que a disputa política e ideológica ofusca a discussão científica e moral sobre o assunto. Por exemplo, a alegação de que a Covid-19 é, na verdade, um resfriado leve que pode ser tratado com sucesso com vitamina C e aspirina, ou a alegação de que a grande quantidade de mortes em todo o mundo, associadas a Covid-19, é na verdade uma grande mentira, não pode ser feita com base em razões políticas ou retóricas. Fazer tais afirmações, que contradizem os resultados de um exame rigoroso dos fatos, não contribui para a discussão científica, mas deturpa os próprios fatos.

Da mesma forma, o aspecto moral da questão tem sido, por sua vez, distorcido, exceção feita ao estudo claro, sóbrio e conciso do professor Roberto de Mattei, intitulado Sobre a legalidade moral da vacinação (Edizioni Fiducia, abril de 2021, disponível em vários idiomas). Até o momento, ninguém o refutou. As únicas críticas de que tenho conhecimento (publicadas na LifeSiteNews ou por Christopher Ferrara, no Catholic Family News) foram escritas, em grande parte, a partir de uma perspectiva política e controversa. Mas temo que tais críticas, ao emprestar uma voz moral inequívoca à discussão política e polêmica, irão apenas confundir e desinformar os leitores, bem como correr o risco de prejudicar a credibilidade do movimento pró-vida, que foi tão arduamente conquistado por tantos anos.

Eu estava entre aqueles que inicialmente acreditavam que a vacinação contra o coronavírus era ilícita, porque todas as opções de vacinas atualmente disponíveis são, ou parecem ter sido, produzidas ou testadas com linhas celulares derivadas de células de fetos abortados há meio século. No entanto, graças à análise do Professor de Mattei sobre a legitimidade moral das vacinas, tive que mudar de ideia.

O professor De Mattei examina minuciosamente, e de forma convincente, os tipos e graus de cooperação com o mal, chegando à conclusão de que é insustentável considerar o recebimento da vacina, hoje, como cooperação em um crime cometido anos atrás. O professor explica, também, que aceitar um bem derivado de um mal, para combater uma doença que atualmente nos aflige, não constitui qualquer aprovação do crime que está na sua origem. As inconsistências lógicas daqueles que, por um lado, rejeitam as vacinas contra a Covid-19 e, por outro, fazem uso de outras vacinas, que por sua vez são produzidas a partir de linhagens celulares provenientes de crianças abortadas, são por ele corretamente apontadas. Essas vacinas foram solicitadas por muitos Estados, ao longo de um século, e são aceitas por quase todos os críticos da vacina contra o coronavírus. Na verdade, as linhas de células fetais têm sido usadas para muitos medicamentos comumente usados, incluindo antibióticos, insulina ou terapias para controlar a hipertensão. Isso nos ajuda a colocar as vacinas contra a Covid-19 na perspectiva certa e a avaliar sua licitude.

Logicamente, a rejeição dessas vacinas, com base em sua produção com linhagens de células fetais, só faz sentido se também rejeitarmos todos os medicamentos comumente usados ​​produzidos dessa maneira. Acredito que a análise sólida de De Mattei, que explica que não é obrigatório nem possível evitar todas as formas de cooperação material com o mal, é essencial para quem tenta fazer a coisa certa, mas, ao mesmo tempo, está preso a exigências morais que nada têm a ver com a verdadeira ética ou com a autêntica teologia moral e o ensino da Igreja, pois contradizem tanto as sólidas intuições éticas quanto o atual Magistério, exercido pela Congregação para a Doutrina da Fé em união com o Papa, para não falar do Magistério de três papas anteriores que se declararam na mesma direção do atual.

A falta de consistência também é evidente naqueles que assumem a posição de que é totalitária qualquer vacinação obrigatória contra a Covid-19, embora aceitem a vacinação obrigatória de crianças contra a poliomielite e outras doenças em muitos países ocidentais, incluindo Itália e Áustria, a qual, por mais de cem anos, tem evitado as mortes que, devido a estas doenças, assolaram a Europa no passado. Além disso, visto que Deus pode tirar o bem do mal, nós nos beneficiamos de muitos bens que surgiram a partir de males do passado. Aceitar esses bens é lícito, porque, como diz São Paulo, “todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus” (Romanos 8, 28). E Santo Agostinho explica: “Deus Todo-Poderoso (…), sendo sumamente bom, nunca permitiria que nenhum mal existisse em suas obras, se não fosse suficientemente poderoso e bom para tirar o bem do próprio mal” (Enchiridion de fide, spe et charitate, 11, 3: PL 40, 236).

Deus usou o adultério e o assassinato do Rei Davi para gerar a linhagem humana de Cristo; e ele usou o horrível pecado do assassinato do Homem-Deus para nos redimir. Não há crime maior do que matar Jesus Cristo, e não há maior benefício, para a humanidade, do que aquele que Sua paixão e morte fizeram por nós. A carne e o sangue de nosso Senhor crucificado trouxeram-nos o maior de todos os benefícios, ainda que obtido com o mais hediondo de todos os crimes. E, embora Cristo tenha morrido por nossos pecados, e o tenha feito voluntariamente, serviu-se de crimes atrozes para fazê-lo. Ao receber os sacramentos, não participamos do deicídio nem aprovamos Seu assassinato em Jerusalém. No momento em que Deus permite que o não-nascido assassinado seja um instrumento de benefício muito menor (comparado ao que adveio da morte de Cristo) para a humanidade, esse sacrifício se torna um pálido reflexo de Seu próprio sacrifício. E, quem associa a vacinação com o canibalismo, corre o risco de repetir uma das primeiras acusações contra os cristãos: a de antropofagia, por comerem a carne do divino Cordeiro na Sagrada Eucaristia (S. Justino, I Apologia, 26; Eusebio, Historia ecclesiastica V, 1, Tertuliano, Apologeticum 4, 9).

As objeções que vi ao estudo do professor de Mattei referem-se, principalmente, a uma seção que trata do direito do Estado de impor a vacinação obrigatória para proteger o bem comum, ilustrado com exemplos históricos. Embora este seja um conceito compreensivelmente difícil para qualquer pessoa que já experimentou muitos exemplos de abusos da autoridade do Estado, com base, no entanto, nas evidências que ele fornece, acredito que o ponto de vista do Professor De Mattei é, em princípio, correto e amplamente aceitável em muitos outros casos. Se uma doença constitui uma séria ameaça ao bem comum, o Estado pode (e todos os Estados o fazem) instituir certas medidas para evitar (tanto quanto possível) danos aos seus cidadãos, sem que sejam por isto totalitários.

Isso não significa que todas as medidas tomadas pelo Estado e pela Igreja contra o coronavírus tenham sido boas. Pelo contrário, algumas delas foram totalmente equivocadas, se não absolutamente criminosas. Refiro-me, em particular, às medidas que impediram os moribundos de receber os sacramentos, ou os familiares de os visitarem nos hospitais. Mas, se as autoridades ordenassem que os padres, que administram os sacramentos aos moribundos nos hospitais durante a pandemia, fossem vacinados, creio que eles teriam o dever de obedecer. Em princípio, o Estado tem o direito de legislar o que julgar ser do interesse do bem comum. Este direito pode ser corretamente exercido e não pode ser considerado totalitário, desde que não contradiga a lei natural ou a lei divina revelada.

Da mesma forma, isto não significa que a vacinação forçada seja aceitável ou que o discernimento dos indivíduos, ao tomar a vacina, não deva ser respeitado.

As conclusões a que cheguei são, portanto, as seguintes:

1. Valer-se dos bons efeitos de crimes ocorridos no passado distante não é cooperação formal nem material com esses crimes. No máximo, o que poderia ocorrer é a ausência de um protesto radical contra esses crimes do passado. No entanto, não somos obrigados nem somos capazes de protestar contra todos os crimes passados ​​de forma tão radical (ver conclusão).

2. No caso da vacina contra a Covid-19, é impossível colaborar com um crime de aborto ocorrido no passado. Contudo, podemos expressar publicamente, e em particular, a nossa desaprovação por aquele aborto já realizado, além de muitos outros crimes, de várias naturezas, cometidos no passado (e, sem dúvida, o Professor De Mattei o faz de maneira exemplar, em seu estudo). Nem somos obrigados a evitar qualquer cooperação material, mais ou menos próxima, com crimes efetivos: se quiséssemos evitar qualquer cooperação material remota com o aborto e outros crimes, não poderíamos comprar produtos fabricados na China ou em países onde existe escravidão ou o aborto forçado; nem comprar medicamentos em uma farmácia que vende abortivos e anticoncepcionais; nem comprar livros em livrarias ou editoras que vendem pornografia. Nem é preciso dizer que esta lista é incomparavelmente mais longa.

3. Se aceitamos a vacinação obrigatória de crianças contra rubéola, poliomielite e outras doenças; ou tomamos uma vacina para viajar a países tropicais, onde se espalham ou poderiam se espalhar doenças perigosas, não poderíamos, em princípio, recusar ao Estado o direito de exigir vacinação contra a Covid-19, mesmo que tenhamos a possibilidade de refutar esta decisão com base nas informações empíricas e médicas de que dispomos. Quanto às medidas concretas anti-Covid, devem-se examinar quais delas sejam de fato úteis e razoáveis, ou infundadas, absurdas ou totalitárias. No entanto, sem esse exame, não se pode dizer que todas as medidas contra a Covid-19 sejam totalitárias e inadmissíveis (muitas das quais são semelhantes às praticadas em outros lugares, sem que tenham suscitado grandes reações).

4. Por fim, concluí que se pode, em sã consciência, para proteger a própria vida e a própria saúde, assim como a dos outros, concordar em tomar uma vacina que tenha 90% de possibilidades a mais de proteger a saúde e a vida de muitos, embora tenha sido produzida com os efeitos de crimes cometidos do passado.

Estas são as conclusões mais significativas a que cheguei, graças à excelente e extremamente aprofundada análise de Roberto De Mattei. Espero que muitos outros cheguem às mesmas conclusões, não por serem partidários do Professor de Mattei ou meus, mas apenas pela verdade que o Professor De Mattei expõe de modo magistral. É exemplar a forma como este estudioso romano contribui, como historiador escrupuloso e moralista à maneira de Tácito, sine ira et studio, para lançar luz sobre este importante debate. Sem ataques injustos e insultos ad hominem, todos nós devemos perseguir o único propósito de encontrar a verdade científica, moral e religiosa sobre a vacina e sobre os fundamentos razoáveis ​​das decisões, importantes e livres, que os Estados e indivíduos devem tomar neste tempo de crise.

https://www.corrispondenzaromana.it/intervento-del-filosofo-josef-seifert-sulla-liceita-della-vaccinazione/