O homem atual não aceita mais o sofrimento e a morte, que seriam produtos de um Deus imperfeito, a ser permanentemente recriado e aperfeiçoado pela ciência e a tecnologia humanas. É certo que para a dor já existem analgésicos bastante eficazes, mas não há remédio ou cirurgia que possam dar cabo definitivamente do aguilhão da morte: a ela pertence a vitória final. A morte é o irremovível obstáculo que ainda frustra a tão desejada autodivinização humana.
Para o cristão, ao contrário, o sofrimento nunca foi e jamais será uma coisa inútil. Quando suportado com a sabedoria da fé — que não é obra humana, mas da graça —, a dor entra como ouro puríssimo, de vinte e quatro quilates, no sagrado comércio da “comunhão dos santos”, esse intercâmbio de intercessões e oferendas que une num só conjunto espiritual — o “corpo místico” de que falava São Paulo — as almas de todos os filhos de Deus: os que agora se maculam com o sangue no mundo, os que ainda se purificam no fogo azul do Purgatório e os que já usufruem dos bens celestes. É o verdadeiro “comunismo”, mais meritocrático do que igualitarista.
Na Páscoa de 2016, o mundo católico teve uma demonstração perfeita de como funciona esse “comunismo” espiritual. A personagem principal da história é a americana Madre Angélica, monja franciscana de clausura e fundadora do maior canal de televisão católico do mundo, a norte-americana EWTN (Rede de Televisão da Palavra Eterna), que sempre esteve a serviço da Igreja e ostensivamente contra seus inimigos, em especial os abortistas e os sabotadores da família tradicional.
Madre Angélica estava doente desde setembro de 2001, quando sofreu derrame cerebral e teve um lado do rosto paralisado. Na época, disse ela da doença que a tornava incapaz de continuar trabalhando na televisão: “Nunca, em toda a minha vida, tive tanta certeza de que Deus me escolhia para ajudar as pessoas a compreender que é pelo sofrimento que Deus nos santifica”.
Na Sexta-feira daquela Semana Santa de 2016, Madre Angélica começou a se despedir do mundo. Não foi por deixar mundo que a bem-humorada monja passou a chorar compulsivamente, logo pela manhã, mas pelas fortes dores físicas que sentia. “Era possível ouvi-la pelos corredores”, contou em sua homilia o padre capelão da EWTN.
Por que permitir-se tanto sofrimento, perguntaria o mundo, nesta época de recursos farmacológicos tão sofisticados? Madre Angélica havia instruído seus cuidadores para que não lhe dessem nenhum tipo de analgésico, pois queria oferecer a Deus o diamante puro das últimas dores de sua vida — uma vida que, aliás, nunca foi isenta de sofrimento: das fortes dores de estômago dos vinte anos, cuja cura (que ela reconhecia milagrosa) a fez entrar em 1945 para o mosteiro Monjas Clarissas, em Cleveland; dez anos mais tarde, as insuportáveis dores nas costas provocadas por um escorregão e uma queda que quase a deixou inválida; e o derrame aos setenta e oito anos, que lhe paralisou um dos lados do rosto e a afastou da televisão, onde por décadas falou com o público sobre Deus, vida eterna, pecado, conversão, sempre com o fino humor que a caracterizava.
Madre Angélica tinha aprendido, com São Paulo (Carta aos romanos, 5, 3), que o cristão deve se honrar até com as tribulações: “…a tribulação produz a paciência, a paciência prova a fidelidade e a fidelidade, comprovada, produz a esperança. E a esperança não engana”. É o roteiro da santidade, único caminho que, como bem observou o anti-Freud Rudolf Allers, consegue salvar o ser humano da rebeldia, da insegurança, do egocentrismo, da desilusão, dos escrúpulos, do ressentimento, das hesitações paralisantes, das ambições de poder.
Quando outros logo pensariam em eutanásia, Madre Angélica desprezou até os lícitos analgésicos. Quem lucraria com tanto sofrimento valentemente oferecido? Os pecadores deste mundo em busca de conversão — razão pela qual nasceu a EWTN —, as almas do purgatório à espera da liberação definitiva e, sem dúvida, a rede de televisão que ela fundou.
A ortodoxia religiosa nunca foi, para ela, uma limitação, um empobrecimento desdenhador da liberdade humana. Se o Cristo era o pastor que indicava o único caminho possível à humanidade, rebanho privilegiado com direção pré-determinada, Madre Angélica podia entregar-se sem reservas à obediência da fé, fonte permanente de segurança existencial, que nenhuma doutrina heterodoxa poderia oferecer; contrapeso sobrenatural à natural tendência da liberdade humana, sempre predisposta a repetir a soberba adâmica.
Republicou isso em Leveza e Esperançae comentado:
Pude compreender bem o versículo de S. Paulo: ” “…a tribulação produz a paciência, a paciência prova a fidelidade e a fidelidade, comprovada, produz a esperança. E a esperança não engana”. Obrigado, prof J.C. Zamboni.
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